O Tesouro Nacional desembolsou nos últimos anos R$ 46,8 bilhões por ser garantidor de dívidas que governos estaduais deixaram de pagar a bancos, instituições financeiras e organismos multilaterais. Desse valor, só R$ 5,3 bilhões foram recuperados pela União --ou 11% do total.
Os números se referem ao período entre 2016 e 2022 (série histórica do Tesouro) e devem aumentar ainda mais nos próximos meses após decisões favoráveis aos estados concedidas pelo STF (Supremo Tribunal Federal), autorizando governadores a suspenderem o pagamento de dívidas com credores.
Decisões judiciais têm blindado os cofres dos estados contra ressarcimentos ao Tesouro, embora os contratos de empréstimos autorizem a União a buscar a devolução dos recursos em caso de inadimplência.
Para especialistas, a tendência de decisões favoráveis aos estados no STF serve como incentivo a maiores gastos por parte desses entes, uma vez que se reduz qualquer perspectiva de cobrança ou punição.
A consequência para o governo federal é o aumento da dívida pública, uma vez que o país precisa emitir mais títulos para honrar os compromissos e evitar a declaração de um calote, o que arranharia a reputação do Brasil como um todo.
Sem considerar o efeito da inflação ou os juros pagos sobre essa dívida, o valor não recuperado equivale a cerca de 0,6 ponto percentual da dívida bruta do país, que encerrou o mês de maio em 78,2% do PIB (Produto Interno Bruto).
Ao pedir a suspensão de pagamentos, os estados costumam alegar dificuldades financeiras. A União, por sua vez, é obrigada a quitar as prestações porque é garantidora desses contratos. É um papel semelhante ao de um fiador no contrato de locação de imóvel, que fica responsável pela quitação de dívidas caso o inquilino deixe de honrar seus compromissos.
As liminares que suspendem o pagamento de dívidas de estados com outras instituições são apenas mais um capítulo de um histórico de batalhas judiciais entre governos estaduais e a União.
A mais recente delas envolve a fixação de um limite para a cobrança de ICMS sobre combustíveis, energia elétrica, transporte e telecomunicações, medida aprovada pelo Congresso Nacional neste ano em meio à queda de braço entre os governadores e o presidente Jair Bolsonaro (PL).
O STF busca intermediar um acordo após ser acionado pelos governadores, para quem as perdas podem chegar a R$ 92 bilhões. Já a União alega que os estados estão com os cofres abastecidos, diante do crescimento geral da arrecadação, e podem reduzir impostos.
Enquanto não se chega a um denominador comum, a Corte já decidiu em favor de alguns estados, permitindo que eles suspendam o pagamento de parcelas da dívida com a União para compensar suas perdas de arrecadação.
Para o economista Marcos Mendes, pesquisador do Insper e colunista da Folha, o histórico de conflitos demonstra que o problema não está somente nas garantias de empréstimos, mas sim "no sistema federativo como um todo".
"Tem alguma coisa que faz com que o STF dê ganho de causa aos estados em 98%, 99% das ações, sem nenhuma comprovação dos números. É só dizer que não tem capacidade financeira. De modo geral, o STF tende a interpretar os estados como incapazes. Isso é um incentivo a gastar mais, se endividar e não pagar", afirma.
"Isso vai ser reforçado agora na disputa com a União por causa do ICMS, embora nesse caso os estados tenham razão", diz Mendes.
No caso dos compromissos com bancos e outras instituições, os atrasos começaram em 2016, e os estados conseguiram as primeiras liminares em 2017, no auge da crise que os obrigou a parcelar salários de servidores e atrasar repasses a fornecedores.
Anos depois, alguns governos estaduais conseguiram renegociar os passivos ao ingressar no RRF (Regime de Recuperação Fiscal), programa de socorro desenhado para ajudar estados muito endividados em troca de ajuste nas contas. Mesmo assim, o dinheiro só será recuperado gradualmente, conforme cronograma acertado com o governo federal.
É o caso, por exemplo, do Rio de Janeiro, que já deixou de pagar R$ 28,6 bilhões em dívidas com outras instituições, dos quais R$ 2,8 bilhões foram recuperados. Os valores não consideram os débitos do estado diretamente com a União.
O governo fluminense já foi beneficiado por duas liminares no STF, em 2017 e 2021. Segundo a Secretaria de Fazenda do Rio, graças à proteção do regime, outros R$ 18,4 bilhões em dívidas garantidas pela União ainda deixarão de ser pagos durante os nove anos de vigência do plano de recuperação.
Outros estados ainda se agarram a liminares para evitar uma cobrança bilionária que poderia inviabilizar suas finanças, como é o caso de Minas Gerais. Blindado por uma decisão judicial de 2018, o estado já deixou de pagar R$ 12,1 bilhões em empréstimos com terceiros, integralmente honrados pela União --que recuperou apenas R$ 1,3 bilhão.
Segundo a Secretaria de Fazenda de Minas Gerais, o estado tem uma dívida de R$ 116,5 bilhões diretamente com a União e de R$ 33,96 bilhões com outras instituições, tendo o Tesouro como fiador. Em ambos os casos, os pagamentos estão suspensos.
"O pedido de adesão ao RRF já foi encaminhado e aceito pelo governo federal. O governo de Minas tem um prazo de até 12 meses para encaminhar o plano para homologação", diz.
Segundo o Tesouro Nacional, em 100% dos casos em que não houve recuperação dos valores honrados pelo governo federal, as razões foram impedimentos judiciais.
"O aumento de honras de garantia sem a correspondente recuperação das contragarantias tem como efeito final o aumento da dívida pública federal, uma vez que essas despesas são pagas com recursos de emissão de dívida", diz o órgão em nota.
O Tesouro afirma ainda que não é possível estimar quanto já foi pago em juros da dívida pública devido ao acionamento dessas garantias. "Contudo, verifica-se que a inadimplência de alguns entes tem o reflexo de aumentar as despesas financeiras do governo federal, onerando a sociedade como um todo."
Parte das dívidas não pagas pelos estados foram contratadas entre 2012 e 2014, período em que o governo da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) facilitou o endividamento dos estados para turbinar obras de infraestrutura.
O problema é que não houve um aumento real dos investimentos, apenas uma substituição das receitas que os bancavam. Ao usar os empréstimos, os estados passaram a ter mais espaço no orçamento para conceder aumentos salariais a servidores --um tipo de despesa difícil de ser revertida em momentos de crise.
De lá para cá, o sistema de garantias foi reformulado pelo Tesouro para dificultar o endividamento de estados que já estão com a saúde financeira comprometida. Uma das regras prevê que apenas aqueles com nota A ou B (em uma escala até D) estão aptos a receber aval federal. Antes, era possível conceder garantia a qualquer um, por meio de uma autorização especial.
No entanto, Mendes avalia que o ideal é a União deixar de ser a garantidora de última instância, pois isso cria um risco moral --um incentivo aos estados para agirem de forma mais arriscada diante da segurança de que serão socorridos em qualquer situação.
Segundo ele, o mais apropriado seria constituir um fundo garantidor, abastecido e gerido pelos próprios estados, que ficaria responsável por afiançar os novos empréstimos. A avaliação do economista é que isso criaria incentivos para uma gestão mais responsável dos recursos, bem como para o pagamento em dia das obrigações.
Por Idiana Tomazelli / Folhapress
Postar um comentário