O número de registros de armas de fogo em poder de colecionadores, atiradores e caçadores no Brasil mais do que dobrou em 2020. Na comparação com o ano anterior, houve um aumento de 120%. Trata-se do modelo de registro usado por atiradores esportivos, como os pais da jovem que diz ter atirado acidentalmente na adolescente Isabele Ramos, morta com um tiro no rosto em um condomínio de luxo em Cuiabá no dia 12 de julho.


O total de armas registradas no sistema da Polícia Federal, onde são incluídas aquelas compradas por cidadãos comuns, sem registro de colecionador ou prática esportiva, também cresceu: de 2017 para 2019 houve um crescimento de 65,6% nos registros ativos.


Apesar disso, as apreensões de armas de fogo caíram: a queda foi de 1,9% nas operações da Polícia Rodoviária Federal e de 0,3% nas apreensões feitas pelas polícias estaduais em 2019, na comparação com 2018. Os dados são do 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado neste domingo (18) pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.


A queda nas apreensões feitas pelas polícias, em um contexto de aumento nos números de armas registradas, mostra que houve uma diminuição no interesse das autoridades neste tipo de operação, segundo Ivan Marques, presidente da Organização Internacional Control Arms e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.


“Como os números demonstram um aumento significativo nos registros de armas ativos, tanto para civis quanto para forças de segurança, e, historicamente observa-se que parte dessas armas migra do mercado legal para o ilegal, infere-se que a diminuição das apreensões é também sinal de redução de interesse neste tipo de operação”, avalia o especialista no Anuário.


Em 2019, das 105 mil armas apreendidas no país, pelos menos 6.740 caíram no mercado ilegal. Para o pesquisador David Marques, coordenador de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e doutorando em sociologia na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), o número de armas legais que vão parar no mercado ilegal pode ser ainda maior, já que muitos proprietários de armas legalizadas não registram em sistema quando seus equipamentos são furtados, roubados ou extraviados.


Segundo o pesquisador, um dos fatores que podem contribuir para o aumento nas mortes violentas intencionais verificado no 1º semestre de 2020, documentado pelo Monitor da Violência do G1 e confirmado pelo Anuário, é justamente a disponibilidade de armas de fogo no mercado ilegal.


“A questão da violência é um fenômeno multidimensional, que sofre influência de diferentes fatores, e um deles é com certeza a disponibilidade de armas de fogo. Isso está bem comprovado na literatura cientifica, e isso está relacionado também a essa migração, porque algumas dessas armas legais vão ter uma vida útil nas mãos da criminalidade, vão alimentar o mercado ilegal e vão ser usadas em crimes violentos, como homicídio e latrocínio”, explica David Marques.


No primeiro semestre deste ano, mesmo com a pandemia, houve uma alta nas mortes intencionais, segundo o Monitor da Violência. O Anuário também identificou o aumento. Foram 25.712 mortes violentas de janeiro a junho, segundo a publicação, ante 24.012 do mesmo período do ano passado – um aumento de 7%.


Registros de armas

Dois sistemas diferentes reúnem os registros de armas de fogo no Brasil, um administrado pelo Exército e outro pela Polícia Federal.


O Exército é responsável pelo Sistema de Gerenciamento Militar de Armas de Fogo (Sigma), que reúne dados das armas registradas para as Forças Armadas, policiais militares dos estados, Agência Brasileira de Inteligência (Abin), além daquelas usadas por Colecionadores, Atiradores desportivos e Caçadores, que são chamados CACs.


No sistema do Exército, há 1.128.348 registros de armas de fogo ativos, segundo dados de agosto de 2020. Dessas, 496.172 armas são da categoria CACs – um número 120% maior do que o verificado em 2019.


Um outro banco de dados, chamado Sistema Nacional de Armas (Sinarm) e controlado pela Polícia Federal (PF), reúne as armas da própria corporação e também as usadas pelas polícias civis dos estados, Polícia Rodoviária Federal, guardas municipais, de órgãos como Ministério Público e Poder Judiciário, além daquelas compradas por qualquer cidadão que tenha direito a posse ou porte.


Neste sistema também houve aumento no número de registros ativos. Em 2017, eram 637.972 registros de armas de fogo ativos no Sinarm. Em 2019, este número passou para 1.056.670, um crescimento de 65,6%.


O Anuário não traz dados dos registros de armas registradas por CACs em cada estado do país, mas há números estaduais dos registros feitos no sistema da Polícia Federal.


A unidade da federação que teve o maior aumento nos registros foi o Distrito Federal, com um crescimento de 538% nos cadastros de posse ativos, que foi de 35.693 em 2017 para 227.940 em 2019.


Apreensões

Apesar do aumento na quantidade de armas registradas, as apreensões estão estáveis há alguns anos no país. Em algumas regiões, houve inclusive queda brusca na taxa de apreensões a cada 100 mil habitantes.


A mais acentuada ocorreu na região Centro-Oeste, que em 2016 era a campeã de apreensões no país, retirando de circulação 99 armas para cada cem mil habitantes. Em 2019, este número despencou para apenas 32,6 para cem mil habitantes, colocando a região como a que menos retira armas ilegais de circulação em todo o Brasil.


Para David Marques, coordenador no Fórum de Segurança Pública, é preciso que a sociedade cobre das forças de segurança mais controle do mercado ilegal de armas.


“A gente não pode achar natural que as policias apreendam menos armas num contexto em que temos mais armas em circulação. A gente tem que demandar, para que seja possível haver uma redução de homicídios, que a gente tenha policias nos estados preparadas para lidar com o mercado ilegal de armas, com mais investigação e inteligência”, afirma Marques.


Sistemas para registro de armas

A existência de dois sistemas diferentes para o registro de armas de fogo é alvo de críticas dos analisas do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O pesquisador David Marques explica que os sistemas são “obsoletos” e não permitem comparações e análises que seriam necessárias para melhor controle da posse de armas no país.


O Anuário critica a existência de duas bases que, juntas, não dão conta de indicar exatamente quantos cidadãos brasileiros possuem armas de fogo legais no país – uma questão que especialistas em segurança pública tentam responder há anos.


“Os sistemas federais ainda não conseguem fornecer essa informação básica. Não ajuda a instabilidade jurídica promovida pelo sem-fim de decretos e alterações de portarias publicadas pelo Governo Federal a partir de janeiro de 2019”, avalia o advogado Ivan Marques, presidente da Organização Internacional Control Arms, no Anuário.


Uma determinação de 2004 prevê que o Exército promova a troca de informações com a Polícia Federal do seu cadastro de armas, mas a normativa ainda não é cumprida pela instituição. Em junho de 2019, um decreto, assinado pelo presidente Jair Bolsonaro, reforçou a exigência e deu prazo de um ano para que o compartilhamento passasse a ser feito, mas também foi descumprido.


Segundo Ivan Marques, a criação de novos critérios e classificações faz com que fique difícil definir quais categorias, por lei ou norma infra legal, devem registrar sua arma nos bancos de dados oficiais.


G1

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