"Pegue uma carga de banana aqui na Bahia para levar até Belém e pare para dormir para ver o que acontece com a banana." É assim que um caminhoneiro justifica, em uma rede social, a necessidade de tomar rebite, tipo de anfetamina também chamado pela categoria de bolinha ou arrebite, para se manter acordado.
"Qualquer um sabe que no transporte de frutas e verduras a viagem tem que ser rápida. Não pode perder tempo. Se for seguir a lei, a carga está perdida", diz outro.
Desde 2016, quando o exame toxicológico, teste para detectar drogas no organismo, passou a ser exigido para motoristas profissionais que trabalham com caminhões, carretas ou ônibus, 170 mil motoristas já foram flagrados com algum químico ilegal no corpo, segundo dados do SOS Estradas, programa ligado à segurança viária, com dados da associação brasileira de laboratórios de toxicologia.
Apesar do rebite ter ficado popular, é a cocaína a droga mais detectada nesses exames, com 68% das detecções. Opiáceos (derivados do ópio, como heroína) são 21%, seguidos por maconha e anfetamina.
O exame toxicológico é feito com cabelo do motorista e detecta o uso contínuo de substâncias químicas nos 90 dias anteriores à coleta. Passou a ser exigido em 2016 para motoristas das categorias C, D e E (caminhões, carretas, ônibus e vans, entre outros), mas enfrentou questionamento nos tribunais e resistência dos caminhoneiros, que até hoje reclamam do preço alto do exame, que pode passar dos R$ 200. Também houve questionamento por não ser eficaz para impedir que o motorista se drogue antes de viajar, apenas exigir um planejamento para não se drogar antes de fazer o teste.
O governo Bolsonaro tentou acabar com essa exigência no projeto de lei que enviou ao Congresso no ano passado que altera o Código de Trânsito Brasileiro. No texto que foi aprovado pelos deputados e senadores, porém, o exame voltou a ser exigido. O texto (que inclui outras mudanças como aumento da validade da CNH) depende de sanção presidencial para virar lei.
Wallace Landim, o Chorão, caminhoneiro que ganhou notoriedade como liderança da categoria após a greve de 2018, diz que é a favor do exame, mas contrário à forma como é feito hoje. "O valor é exorbitante, a lei onera o trabalhador. E deveria ser obrigatório não só para os caminhoneiros, mas para todos os motoristas, que também bebem, usam drogas e saem dirigindo. Não é só a questão do exame, para melhorar a segurança nas estradas é preciso investir em infraestrutura", diz.
O rebite hoje virou até piada entre caminhoneiros, que fazem paródias como "batatinha quando nasce nós pomos no caminhão, rebite quando bate acelera o coração" e publicam vídeos no YouTube em alta velocidade.
Para Cajau Antonelli, 46, que também publica nas redes histórias da sua vida na estrada, isso só prejudica a categoria. "Nós fazemos um trabalho de formiguinha e essa turma rema contra a maré. A gente quer combater isso até de uma forma política, estamos propondo que publicar vídeos de infração de trânsito também seja crime", diz ele.
Antonelli chama o exame toxicológico de "mal necessário". "Causa impacto, gera um custo, logicamente ninguém. Mas o benefício é maior, eu chamo isso de investimento. Eu me sinto mais seguro na estrada sabendo que a chance de outro motorista estar usando drogas é menor", diz.
Há, principalmente, diz ele, outro fator: concorrência desleal. "A pessoa que usa droga trabalha dobrado, sem se preocupar com saúde, segurança, e produz mais [dirige por mais horas sem parar]. Para muitos patrões, só importa o resultado. É injusto com quem trabalha de cara limpa, como eu", diz ele, que também cita o fato de que muitos dos motoristas que se submetem a essas condições também transportam drogas para o crime organizado, o que torna sua carga regular ainda mais barata, já que ele terá outros lucros.
Por lei, motoristas podem fazer jornadas de até 12 horas (caso haja acordo coletivo, que permite até 4 horas extras além das 8 horas usuais), com intervalos obrigatórios de descanso. Cargas vivas (transporte de animais, como galinhas ou porcos) ou perecíveis (frutas e verduras) são exceções e não há jornada máxima estabelecida em lei.
Para o procurador do trabalho Paulo Douglas, a lei é "hipócrita, fala até em pontos de parada, quando sabemos que nada disso existe na maior parte da malha rodoviária do Brasil. Os motoristas hoje trabalham em condições extremamente adversas, com jornadas exaustivas e, na minha avaliação, em condições análogas à escravidão", diz.
Douglas pesquisa regularmente o uso de drogas em estradas e viu o índice de positividade (porcentagem de motoristas com drogas no corpo) em Mato Grosso do Sul, onde atua, cair de 34% em 2015 para 14% em 2019, redução que ele credita à obrigatoriedade do exame toxicológico.
"O índice de aceitação do exame é alto, mesmo entre os que o resultado deu positivo. Foi de 79% na última pesquisa. Isso acontece porque não são motoristas que usam drogas para fins recreativos, porque gostam, mas pela necessidade de cumprir jornadas de trabalho desumanas", afirma.
Os dados do levantamento da SOS Estradas mostram que na categoria D da CNH, que permite o transporte de pessoas, como ônibus, onde há mais flagrantes de uso de drogas pelos exames toxicológicos.
"O transporte de milhões de brasileiros também entra em risco quando os motoristas de ônibus também usam drogas", diz Rodolfo Rizzotto, coordenador do SOS Estradas. "E esses veículos não são parados nas operações de Lei Seca, porque é complicado operacionalmente fazer isso."
Letícia Pineschi, da Abrati (Associação das Empresas de Transporte Terrestre de Passageiros), diz que as empresas do setor fazem exames periódicos e aleatórios com motoristas, além da obrigatoriedade do teste para os profissionais, e o controle tem que ser rígido pelo alto custo dos acidentes.
"Tem o custo das vidas humanas, que é incalculável, e tem os veículos que chegam a custar R$ 1,3 milhão. O exame toxicológico reduz absurdamente o custo da operação [ao evitar acidentes]", diz ela. O alto índice de positivo na categoria pode refletir o problema do transporte clandestino ou dos ônibus de fretamento, afirma ela.
Marcos Bicalho, diretor administrativo da NTU (empresas de transporte urbano), diz que o problema é menor dentro das cidades, onde as jornadas são controladas e mesmo as velocidades dos veículos são bem menores.
Folhapress
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