A Constituição diz que é objetivo da República "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação".
Também afirma que qualquer cidadão pode ser votado desde que preencha requisitos básicos, como estar no pleno exercício dos direitos políticos e ter filiação partidária.
Muitos brasileiros, contudo, se consideram fora dessa equação. Não por ter o direito de candidatura cerceado, mas porque a competição em pé de igualdade parece algo distante --e vencer, mais ainda.
É porque "a nossa democracia representativa não representa", para repetir um chavão usado na militância da diversidade na política, que ativistas ligados a negros, LGBTs, povos indígenas e pessoas com deficiência querem ver as eleições deste ano lotadas de candidatos das causas.
Uma parte dos defensores dessas bandeiras quer a criação de cotas que possam, segundo eles, encurtar a distância que separa porta-vozes desses grupos de cadeiras no Legislativo e no Executivo. Mas eles reconhecem que, mesmo sem um mecanismo afirmativo, há avanços.
Hoje, só há reserva de vagas para mulheres, que desde 2010 devem preencher no mínimo 30% do espaço nas chapas ao Legislativo. Indiretamente, o dispositivo acaba também beneficiando os demais grupos minoritários, que têm mulheres na sua composição.
Como política específica para os negros, um passo importante foi dado na semana passada, quando o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) decidiu obrigar os partidos a destinar recursos do fundo eleitoral de maneira proporcional à quantidade de candidatos negros e brancos.
A mudança, contudo, só vale a partir da eleição de 2022 e se restringe ao aspecto financeiro, sem mecanismo para efetivamente ampliar a presença de não brancos nas listas que as legendas levam às urnas.
Dos prefeitos, vices e vereadores eleitos em 2016, 59% se autodeclararam brancos, 36%, pardos, 5%, pretos, e 1%, indígenas/amarelos.
Os índices contrastam com a proporção de cada grupo na população do país, segundo os critérios do IBGE: 43% se consideram brancos, 47%, pardos, 9%, pretos, e 1%, indígenas/amarelos.
Pardos e pretos formam 56% da população, mas, somados, foram 48% dos candidatos e 41% dos vitoriosos na eleição passada.
Quando se sobrepõem os critérios raça e gênero, a situação pode ser ainda mais dramática, com desvantagem para a fatia feminina. Segundo levantamento do jornal Folha de S.Paulo, 62% dos prefeitos eleitos eram homens brancos, que na população correspondem a 20%.
Já o grupo de mulheres pretas, que totaliza 5% na população geral, representou apenas 0,2% do quadro de eleitos para comandar as prefeituras no Brasil e 0,6% do total de vereadoras.
Pré-candidata a vereadora em São Paulo pelo PSOL, Keit Lima, 29, afirma que as barreiras para alguém como ela ("mulher, preta, gorda, periférica") são muito maiores. Ela aponta o racismo estrutural como o principal problema e considera que isso começa, de maneira geral, já nos partidos.
"Minha maior dificuldade no momento é grana. As pessoas da minha bolha estão tentando sobreviver, colocar comida na mesa. Não tenho como pedir ajuda a elas. Brancos que se dizem antirracistas podem ajudar candidatos negros com doação de campanha", diz a moradora da Brasilândia (zona norte).
Keit chamou de "histórica para o movimento negro brasileiro" a decisão do TSE que estabeleceu a proporcionalidade na distribuição dos recursos públicos de campanha a partir de 2022. Ela reconhece a conquista de espaço nos últimos anos, mas sonha com mais.
"Nós precisamos ser também os escritores das políticas públicas. Não dá para pessoas que nunca pegaram um ônibus ou precisaram do SUS falarem de mobilidade e saúde gratuita", diz a ativista de movimentos negros e periféricos na capital paulista.
O senador Paulo Paim (PT-RS), negro em um Senado dominado por brancos, disse à Folha de S.Paulo no mês passado que o Congresso espelha a desigualdade racial e defendeu a adoção de mecanismos para a inclusão. "É muito difícil negro e pobre romper todas as barreiras. É uma batalha desigual."
O problema da sub-representação se repete entre os indígenas. Joenia Wapichana (Rede-RR) foi a primeira mulher indígena eleita deputada federal da história do Brasil --em 2018.
"Hoje temos a Joenia, mas quantos anos se passaram para chegar do [cacique Mário] Juruna até ela?", questiona a ex-senadora Marina Silva, fundadora do partido da advogada e, como ela, também nascida na Amazônia. Juruna foi o primeiro indígena eleito para o Congresso, em 1982.
Segundo o TSE, em 2018 houve crescimento de 56,47% de candidatos que se declararam índios ou descendentes. Foram 133 concorrentes, ante 85 nas eleições de 2014.
No caso de candidatos abertamente LGBTs, não há informações oficiais, já que não se registra orientação sexual na Justiça Eleitoral. Os dados disponíveis são coletados por organizações da área, mas têm alcance limitado.
Um levantamento de julho da Aliança Nacional LGBTI+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexuais) mostrou a existência em todo o país de 411 pré-candidatos assumidamente LGBT, além de 24 que declararam apoiar os direitos dessa população. Em 2016, foram 215 candidatos.
"Acho que nós estamos muito bem [em termos de participação]", diz Toni Reis, presidente da Aliança. "Nós éramos muito periféricos. As pessoas nem falavam em homossexuais. Aos poucos, mais gente tem se colocado. É bacana porque gera o debate, tira da invisibilidade."
Na visão dele, a chegada de LGBTs ao poder se dará à medida que a sociedade aceitar a diversidade nas esferas sexual e afetiva. "Tenho uma dificuldade com a ideia de cotas para LGBT. As pessoas podem mentir [a orientação], né? É meio difícil provar", constata.
Para uma parcela da comunidade, um debate que precisa ser feito é sobre o papel que esses postulantes, se eleitos, devem desempenhar.
Pré-candidato a vereador em São Paulo pelo PSB, Agripino Magalhães afirma que é necessário eleger pessoas que não apenas sejam LGBT, mas que também defendam a temática.
"Não podemos aceitar o lugar de 'candidaturas de oportunidade', para ajudar a eleger aqueles que pedem nossa morte todos os dias", afirma o assessor parlamentar e ativista, que é gay.
Segundo Agripino, candidatos com boa votação podem acabar elegendo inimigos da causa, por causa do sistema de eleição proporcional. Ele diz ver esse risco, por exemplo, na pré-candidatura do ator e empresário Thammy Miranda, que pretende disputar uma vaga na Câmara pelo PL, partido sem tradição em militância na área.
Thammy se define como uma pessoa progressista e diz que é importante estar em uma legenda tida como conservadora para introduzir a questão do gênero e romper barreiras na direita.
Eleito vereador três vezes (2000, 2004 e 2008) e prefeito duas (2012 e 2016), Edgar Souza ganhou projeção na militância gay por ter sido eleito com a votação de um município "pequeno e conservador", Lins (SP), com 77 mil habitantes, e por ser filiado desde 2011 ao PSDB.
"Sinto uma reserva de muitos ativistas porque não pertenço a partido de esquerda, mas eles não conhecem minha militância, que é anterior a isso", diz ele, que passou por PT, PSOL e PSB.
Souza diverge da ala que acha obrigatório que políticos declaradamente LGBTs tenham trabalho necessariamente voltado para a área.
"Não é ser gay o que me fez prefeito. O que me fez prefeito é eu saber os problemas da minha comunidade em saúde, educação, saneamento, habitação. Não sou monotemático. Eu vou falar só com o meu sindicato, só com a minha igrejinha? Nós temos que falar para fora e falar para todo mundo", opina.
O tucano diz ter sofrido nas campanhas os preconceitos que costumam atingir candidatos LGBT país afora. Em certa ocasião, adversários estouraram um rojão na porta de sua casa. Ele diz que nunca escondeu sua orientação sexual, mas só a divulgou publicamente em 2012.
"O medo de se assumir, do julgamento, existe. Mas mais pessoas estão tendo coragem de dar a cara a tapa. Temos que estimulá-las a entrar na política", afirma ele, que deu entrevista antes da decisão do TSE de agosto que cassou seu mandato por abuso de poder político e propaganda irregular. A defesa recorre.
Folhapress