Uma criança de cinco anos vê seu pai, que a tem no colo, sob a mira de uma arma. Ela o presencia, ainda, cair no chão após levar uma chave de braço. Se antes sentia-se em casa na comunidade em que vive, hoje precisa ser acalmada pelo pai a cada vez que este cobre os 25 metros que separam a porta do lar do portão do terreno.

O caso do filho de Valdenir Alves dos Santos, 45, o mestre Nenê, ilustra as consequências que pode sofrer uma criança exposta à violência. Segundo especialistas ouvidos pela reportagem, elas podem ter estresse pós-traumático e desenvolver depressão e ansiedade.

Naquele 19 de agosto, o mestre de capoeira estava com seu filho no colo, em frente à sua casa na favela do Mangue, zona oeste de São Paulo.

A reportagem questionou a Polícia Militar, por meio da Secretaria da Segurança Pública, sobre quais os protocolos que orientam os agentes durante uma abordagem policial em que há crianças no local.

Se há algum protocolo, a secretaria não o compartilhou com a reportagem. Em nota, o órgão afirma que "abordagens e ações são elaborados respeitando a legislação vigente, incluindo o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos".

Segundo a Polícia Militar, os agentes são orientados a "avaliar o cenário e a gravidade [da ocorrência] para o emprego da técnica adequada a cada situação".

A Constituição Federal prevê, no art 227, que o Estado, em conjunto com a família e com a sociedade, tem o dever de assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem o direito à vida e à saúde (física e mental), de maneira a "colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão".

O ECA reafirma o que diz a Constituição, determinando que qualquer política pública seja pensada dando prioridade absoluta à criança e ao adolescente.

Com base nessas premissas, segundo Pedro Hartung, advogado e coordenador do programa Prioridade Absoluta do Instituto Alana, entende-se que em todas as ações policiais em que há presença de crianças, deve-se pensar primeiro nelas, estejam elas direta ou indiretamente envolvidas na ação policial. Isso porque são mais vulneráveis e suscetíveis, positiva e negativamente, à influência do ambiente.

Sobre o caso do mestre Nenê, Hartung aponta que, pelo descrito pela vítima, havendo uma criança em seu colo, é possível que a polícia tenha empregado uso desproporcional da força.

Negro, mestre Nenê afirma ter sido vítima de racismo ao ser abordado como suspeito de um crime que não cometeu. Ele foi agredido, jogado ao chão e sufocado com uma prática proibida, chegando a desmaiar. O filho assistiu a tudo.

Mestre em psicologia clínica, Lucas Veiga explica que a experiência de uma criança que presencia um conhecido, em especial o pai ou a mãe, sendo vítima de violência pode desenvolver um trauma. O mais comum, nestes casos, é o Tept (transtorno de estresse pós-traumático).

Os sintomas mais recorrentes do Tept são distúrbios do sono (dificuldade para dormir ou pesadelos violentos recorrentes), distúrbios alimentares (dificuldade em se alimentar ou compulsão), ansiedade, falta de concentração, choro intermitente e medo constante.

"A criança fica com medo de sair de casa; pode apresentar quadros de ansiedade quando se deparar com um carro da polícia, por exemplo, porque o veículo remete ao trauma", diz.

A psicóloga Maria Célia Malaquias, coautora do livro "Psicodrama e Relações Étnico-Raciais" (ed. Ágora), diz que uma criança que presencia uma abordagem policial violenta contra seu pai ou mãe passa por uma experiência tão forte e traumática que é como se essa criança experimentasse a sensação de morte do pai e a sua própria.

"Ao viver algo de tamanha intensidade, a criança provavelmente não poderá compreender racionalmente o que aconteceu."

Compreender e expressar o que aconteceu e quais os sentimentos oriundos do trauma formam o principal caminho para lidar com possíveis transtornos causados pela situação.

Apesar disso, nem sempre é necessário o acompanhamento psicológico imediato, segundo Veiga. Antes de mais nada, os pais, a escola e as pessoas próximas à criança devem acolher sua angústia e incentivá-la a expressar seus sentimentos por meio de conversas e desenhos, por exemplo.

"A ausência da possibilidade de elaboração do trauma pode fazer com que os sintomas de estresse pós-traumático perdurem por muitos anos", diz o psicólogo, afirmando que a criança pode se tornar um adolescente ou mesmo um adulto deprimido ou ansioso.

"A criança traumatizada precisa saber que está tudo bem chorar e ter medo", afirma.

O sinal de alerta para a busca por um especialista é a persistência ou piora dos sintomas.

Até os seis anos, as crianças estão em plena fase de desenvolvimento, inclusive do cérebro. É nessa etapa que o ser humano está mais suscetível ao ambiente, segundo Malaquias, e por isso é tão importante evitar o trauma ou, caso ele ocorra, tratá-lo.

Um estudo realizado por pesquisadores do Centro Latino Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli em 2004 já indicava um cenário preocupante de exposição de crianças à violência urbana.

Após entrevistarem 500 crianças da rede pública de ensino, com idades entre 6 e 12 anos, os pesquisadores observaram que 12,1% das crianças já haviam presenciado um assassinato ou morte.

O estudo constatou ainda que, das 500 crianças entrevistadas, 15,7% tinham sintomas compatíveis com distúrbios como depressão e ansiedade.

Em 2019, pesquisadores americanos da Universidade do Sul da Califórnia estudaram o impacto da exposição de jovens com idade entre 11 e 19 anos a eventos traumáticos online, por meio de vídeos de pessoas de grupos étnicos minoritários sendo agredidas, presas ou rendidas.

A conclusão foi que a exposição a esse tipo de conteúdo na internet estava diretamente relacionada a prevalência de sintomas de estresse pós-traumático.

Os efeitos da violência sobre jovens são, além de psíquicos, físicos. Crianças que sofrem de Tept podem ter como sintomas atraso no crescimento e ganho de peso.

Uma criança que assiste a um ato violento contra seu pai pode se sentir desamparada e frustrada. Para Veiga, é possível que ocorra uma ruptura na imagem do pai como "herói", promovendo na criança a sensação de impotência.

Malaquias aponta que, quando a criança vê seu pai sendo agredido e abordado de forma violenta, a sua estrutura de confiança se vê destruída. "Se o pai, que é forte e grande, aos olhos da criança, sofre uma violência, quem a protegerá? O medo dela é enorme. Essa criança e esse pai precisam ser acolhidos", afirma.

Folhapress

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