Pela primeira vez na história, uma mulher transexual disputará o posto de Miss Brasil. Quem protagoniza o feito é a goiana Rayka Vieira, 25, anunciada oficialmente --e com exclusividade para a coluna-- nesta quinta-feira (3) como representante do Centro Goiano no Miss Brasil Mundo 2020. As informações são da coluna 'De Faixa a Coroa    ', da Folha de S. Paulo.

“Nunca tinha imaginado estar neste lugar até pouco tempo atrás. Era um sonho que parecia tão distante, nunca achei que seria possível realizá-lo. Ainda estou encantada com tudo isso. A ficha de que estarei em um dos maiores concursos de miss do país está caindo aos poucos. Hoje sei que isso é totalmente possível e é um marco histórico para nós, mulheres trans. Me orgulho de ser pioneira no Miss Brasil Mundo.”

Rayka agora se prepara para a competição, que inicialmente aconteceria no fim de outubro, mas, por conta da pandemia, foi adiada para 4 de março no Iloa Resort, em Alagoas. Mesmo com a ansiedade a mil e as emoções à flor da pele, Rayka não esquece da representatividade que seu título traz, e acredita que isso pode abrir a mente de muitas pessoas, inclusive das próprias mulheres trans.

“Muitas meninas trans, assim como eu, têm medo de se arriscar. É uma oportunidade que eu não tinha noção de que poderia existir. Estou aqui para mostrar que é possível, um sonho que está se realizando. Não quero ser só mais uma miss, e sim mostrar que nós, mulheres em geral, não precisamos provar que temos algo mais que beleza. Somos inteligentes, fortes, guerreiras, trabalhadoras e humanas acima de tudo”.

Em mais de 60 anos de realização, esta será a primeira vez que um concurso de Miss Brasil desenhado inicialmente para mulheres cisgênero, recebe uma trans --seja na versão Mundo, Universo, Terra ou qualquer outra.

Antes de Rayka, a carioca Náthalie de Oliveira disputou o estadual Miss Rio de Janeiro (versão Universo) no início de 2019, mas não chegou a se classificar para o nacional.

O concurso que Rayka vai participar elege uma brasileira para competir no internacional Miss Mundo, que até hoje também não teve candidata transexual. O Miss Universo, por sua vez, em 2018 contou com a presença da modelo trans Angela Ponce, que defendeu a Espanha na disputa e foi homenageada ao vivo no show da final.

Fã da mineira Natália Guimarães, Miss Brasil Universo 2007, Rayka está se preparando em diferentes quesitos para a etapa. Isso inclui também a elaboração de uma ação social para uma das provas do concurso e, para isso, estuda com sua coordenação um projeto dedicado a jovens trans.

“Vai ser um pouco trabalhoso, mas é essa a diferença que quero fazer como miss. Eu sou uma pessoa muito calma, muito paciente e vou começar a me preparar agora intensamente, tanto na parte física, como de passarela, idiomas e nesse projeto”.

Rayka tomou a decisão de correr atrás de seu sonho de ser miss após ser desligada, recentemente, da empresa em que trabalhava havia quase dois anos na cidade de Anápolis (GO).

“É difícil dizer que não muda algo o fato de ser uma mulher trans, porque muda sim. Eu me sinto cobrada até por mim mesma, para ser a melhor sempre e para me sobressair em tudo, pois as oportunidades não são iguais a todas as mulheres. Já perdi muitos empregos e já fui humilhada em hospitais públicos ao ser atendida’’, desabafa.

A miss se considera uma mulher batalhadora e que tem que lutar dobrado pelo seu espaço. Apesar disso, Rayka ressalta que não quer privilégios e sim respeito, como outra mulher qualquer.

Desde criança, ela sempre se interessou por roupas e sapatos femininos. Vestia as roupas da mãe escondida e era fascinada pelas vitrines das lojas no comércio. Quando tinha que cortar os cabelos, Rayka recorda que chorava em frente do espelho, pois não se reconhecia. Foi então que, aos 15 anos, não suportou mais viver com a sua identidade de nascimento e decidiu se assumir e começar a transição de gênero.

“Sempre respeitei minha família e por isso tive o mesmo respeito deles todo o tempo, e acredito que isso foi muito importante para a formação do meu caráter. Agradeço a Deus todos os dias por eles, pois sem minha família eu não sei onde estaria. Talvez o meu destino fosse o mesmo de muitos outros adolescentes que conhecemos, que são expulsos de casa e ficam sem família, sem emprego, às vezes sem ter o que comer.”

“Esse estigma é tão alto, que muitos chegam a tirar a própria vida, o que é muito triste”, continua Rayka. “Infelizmente muitas famílias são conservadoras e não estão preparadas para enfrentar esse tipo de situação.”

Um fato curioso sobre a miss, é que ela tem uma irmã mais velha que também é transexual. “Foram alguns anos depois que iniciei minha transição. Hoje somos mais que irmãs, somos metade uma da outra e juntas compartilhamos todos os momentos e experiências, o que nos torna mais próximas ainda”, afirma.

“Para quem sonha, eu digo para que nunca desista no primeiro não. Você nunca saberá se conseguirá se não tentar, e você pode ser tudo o que quiser. Abrace as oportunidades que a vida trouxer, assim como eu estou fazendo. Sei que isso vai abrir portas e inspirar muitos jovens que, assim como eu, não acreditaram no futuro. Acho que vale muito a pena, afinal, olhem só onde eu cheguei: no inimaginável.”

Folhapress

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