Cantoras começam a assumir protagonismo em gênero historicamente dominado por homens
Quando Allana Sarah subir no trio elétrico nos seus três dias de desfile no Carnaval de Salvador, estará vestindo homenagens ao negro, à comunidade LGBTQ+ e a sua religião, o Candomblé. Elementos que ajudam a entender a personalidade da cantora conhecida como “A Dama”. Dona de um vozeirão e um black power poderoso, sua estreia no Carnaval será mais um dos marcos da folia. Um registro simbólico do momento em que o gênero mais popular da cidade, o pagodão baiano começa (enfim) a ter mulheres ocupando um local de protagonismo além da dança.
Allana tem 24 anos, é negra, lésbica e mora no bairro de São Marcos, na periferia de Salvador. Como a maioria das garotas do subúrbio da cidade, começou a frequentar ainda na adolescência os bailes das favelas onde o pagodão é o que sai dos paredões.
O gênero nasceu no início da década de 90 com o Gera Samba (depois, chamado de É o Tchan), a partir da reinvenção do samba de roda do Recôncavo Baiano. Foi atualizado pelo contrabaixo do Harmonia do Samba, depois pela percussão do Psirico e mais recentemente pelo intercâmbio com outros gêneros suburbanos como o funk carioca.
Com a derrocada comercial do Axé Music, se transformou no principal produto cultural consumido na capital baiana, influenciando o surgimento de outros ritmos, como as batidas eletrônicas do movimento Bahia Bass e a mistura não rotulável do BaianaSystem.
Mesmo depois de passar por tantas modificações sonoras nessas três décadas de história, o comando do ritmo se manteve masculino. Desde Carla Perez, o local nas bandas reservado para mulheres foi o de dançarinas. No imaginário, o da sexualização e submissão. O desejo do homem heterossexual verbalizado de forma cômica.
“No pagode, a mulher foi sempre limitada a assumir apenas o papel da ‘piriguete’, o lugar de sexualização e objetificação dos corpos. E apesar de ser o pagode um gênero afro diaspórico, provindo das periferias, segue o contexto da sociedade em geral: machista e patriarcal”, diz a jornalista Joyce Oliveira, que junto com mais três colegas Beatriz Almeida, Giovana Marques e Tainá Goes criaram a plataforma “Pagode Por Elas” para divulgar as cantoras do pagodão, que também virou estudo acadêmico.
Allana sabe bem como essa noção objetificada pode atrapalhar uma carreira. Desde os 17 anos perambulou por vários conjuntos musicais como dançarina e segunda voz. Em 2018, fez parte do grupo “O Pega” que teve ligeiro sucesso local com uma versão do funk “Chefe é Chefe, né pai?”.
Sagaz, acabou criando a música “Dama é Dama”, uma resposta para as provocações da canção original. Foi o estalo para sacar que “estava cansada de depender de homem para fazer sucesso” e buscar a carreira solo. Ouviu de muita gente que “banda com mulher não se destaca”. Para contornar a máxima preconceituosa que pairava nas produtoras baianas, resolveu “nadar contra a maré do machismo”. O pagodão, significou mais que o caminho para construção de sua carreira. “Foi o jeito que eu encontrei de dizer tudo que eu queria para as mulheres”, conta.
No final do ano passado emplacou “Ai Pai, Pirraça”, que rapidamente virou uma das músicas mais ouvidas em Salvador no verão. Seu clipe já bateu 1.6 milhão de visualizações no Youtube. Para quem argumenta que a canção pode repetir a imagem feminina submissa, Allana explica que versa sobre uma mulher “empoderada, que se ama, de autoestima elevada” e que “naquele momento entre quatro paredes quer que o parceiro faça o que ela deseja”.
O movimento de ocupação feminina em gêneros originalmente dominados por homens se fortaleceu na última década. Hoje, Marília Mendonça é a cantora mais escutada do país, a número 1 do sertanejo.
Apesar de cada vez mais híbrida, Anitta ainda se diz funkeira. Se o “feminejo” e o funk cantado por mulheres é inspiração, seus patamares ainda estão distantes do pagodão das meninas. Desde que a pioneira Raiane Ferreira, “A Madame” apareceu em 2018 com a música “Movimento do Lento” até a ascensão de “A Dama”, só cerca de 10 mulheres conseguiram entrar na cena. Todas elas longe do alcance nacional, atingido por cantores como Léo Santana e Márcio Vitor do Psirico.
Para Joyce Oliveira do Pagode Por Elas, “o espaço que vem sendo conquistado é mínimo, ainda não é palpável, é inadmissível que na terra mãe do pagodão, só exista uma mulher em ascensão.”
A visibilidade ainda não é das maiores e o preconceito entre as produtoras persiste. Mesmo assim as músicas cantadas por “A Dama” e os outros nomes do movimento começam a ocupar a paisagem sonora de Salvador estimulando mais mulheres a assumir os vocais pelos paredões. “Eu não tenho mais planos, eu traço metas”, diz Allana que sonha em um dia cantar com Ivete e quer virar a primeira mulher do pagodão a ganhar o Brasil.
O primeiro passo para isso foi dado. Sua referência na música, Ludmilla compôs uma canção inédita para ela chamada “Coração Blindado”.
Há dois anos Allana fazia palhinhas em festas em troca da passagem de ônibus. Hoje comandará uma das maiores pipocas do Carnaval. É melhor não duvidar de onde ela pode chegar.
Por Lucas Prata - Época