Escola da zona Sul do Rio de Janeiro, a São Clemente completa neste ano uma década inteira na elite do Carnaval carioca, fato inédito em sua história. Desde 2011 sem cair para a Série A (grupo de acesso), a agremiação levou à Sapucaí uma crítica à malandragem com o tema "O Conto do Vigário". 

Com o humorista Marcelo Adnet entre os compositores, o samba da São Clemente contou fatos históricos envolvendo política e corrupção e mostrando como o "jeitinho" entrou no comportamento brasileiro.

Bem-humorado e debochado, o desfile parecia até um programa de Adnet. Além de compor, o humorista desfilou interpretando o presidente Jair Bolsonaro, com direito a "arminha" com a mão e flexões mal feitas. Cartazes mostraram frases características do atual governo e de seus seguidores, como "A Terra é plana" e "Acabou a mamata".

Adnet ainda chamou seus colegas de "Escolinha do Professor Raimundo". Mateus Solano foi seu "laranja", Érico Brás interpretou um "corretor lunar", que vende terrenos na Lua, e Marcos Veras foi um fazendeiro que caiu no golpe. Paulo Vieira representou um político cheio de regalias na cadeia. 

O livro "Os Contos e os Vigários", do professor e historiador José Augusto Dias Jr. (1961-2019), foi o ponto de partida da pesquisa para o enredo. 

A comissão de frente e o carro abre-alas narraram a história da expressão "conto do vigário". No século 18, dois vigários de Ouro Preto (MG) disputaram a imagem de Nossa Senhora, e um deles propôs que a santa fosse amarrada a um burro, sem falar que o animal já estava acostumado a ir para sua paróquia. 

O VAR (arbitragem de vídeo), utilizado recentemente no futebol, e as notícias falsas, com uma alfinetada ao presidente, também foram citados no samba da São Clemente: "Brasil, compartilhou, viralizou, nem viu! E o País inteiro assim sambou, 'caiu na fake news!'".

A bateria, fantasiada de laranja, representa o verso "Tem laranja! Na minha mão, uma é três e três é dez!", mas além do erro matemático há uma crítica política ao "laranjal do PSL", com candidaturas laranjas do partido que elegeu Bolsonaro à Presidência. 

O ex-presidente Fernando Collor também foi cutucado na ala dos "caçadores de marajás", como o ex-chefe do Executivo se apelidou quando foi eleito, em 1989. A São Clemente também criticou políticos que trocam votos por dentaduras em cidades mais pobres. Raphaela Gomes, rainha de bateria, desfilou fantasiada de Polícia Federal.


"O Conto do Vigário" 

Autores: Marcelo Adnet , André Carvalho, Pedro Machado, Gustavo Albuquerque, Gabriel Machado, Camilo Jorge, Luiz Carlos França e Raphael Candeia. 
Intérpretes: Leozinho, Bruno Ribas e Grazzi Brasil. 

O sino toca na capela e anuncia 
Nossa Senhora, começou a confusão! 
Quem vai ficar com a imagem de Maria? 
O burro vai tomar a decisão 
Mas o jogo estava armado 
Era o conto do vigário 
Nessa terra fértil de enredo 
Se aprende desde cedo 
Todo papo que se planta dá 
Dom João deu uma volta em Napoleão 
Fez da colônia dos malandros capital 
Trambique, patrimônio nacional

Tem laranja! 
"Na minha mão, uma é três e três é dez!" 
É o bilhete premiado vendido na rua 
Malandro passando terreno na lua! 

Hoje, o vigário de gravata 
Abençoa a mamata 
Lobo em pele de cordeiro 
"Trago em três dias seu amor" 
"La garantia soy yo!" 
"Só trabalho com dinheiro" 

Chamou o VAR, tá grampeado 
Vazou, deu sururu 
Tem marajá puxando férias em Bangu! 
Balança na rede 
Abre a janela, aperta o coração 
O filtro é fantasia da beleza 
Na virtual roleta da desilusão

Brasil, compartilhou, viralizou, nem viu! 
E o País inteiro assim sambou 
"Caiu na fake news!" 
Meu povo chegou, ô, ô! 
A maré vai virar, laiá! 
Na ginga, pra frente, lá vem 
São Clemente 
Sem medo de acreditar!

Portal UOL
Imagens: Lucas Landau/UOL

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