Com 420 milhões de reais devidos em impostos, entidades religiosas apostam no lobby da bancada no Congresso para resolver problemas na reforma tributária
Em uma das últimas sessões plenárias no Senado de 2019, Zequinha Marinho (PSC-PA), um dos integrantes da bancada evangélica, aproveitou para fazer uma lamentação em relação ao que chamou de “aberrações” cometidas pelos governos anteriores, que enquadraram as igrejas nas “questões tributárias”. Em meias palavras, o parlamentar estava se queixando das cobranças que puseram vários pastores na mira do Leão. Embora sejam isentas de uma série de impostos no Brasil, as entidades religiosas precisam recolher taxas como a do INSS de seus funcionários (alguns templos empregam dezenas de pessoas em funções que vão de segurança a eletricista). Boa parte das igrejas, porém, não cumpre a lei, e o resultado é uma dívida acumulada de 420 milhões de reais, segundo levantamento de VEJA feito com base na lista de devedores da União disponibilizada pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional. No topo do ranking está a Igreja Internacional da Graça de Deus, do pastor Romildo Ribeiro Soares, com quase 3 000 templos espalhados em onze países (veja o quadro).
O apoio praticamente unânime dos principais líderes evangélicos à candidatura de Bolsonaro à Presidência tem sido cobrado por meio do lobby na forma de um refresco tributário, já que a chamada pauta conservadora vem caminhando a passos mais lentos do que o ideal na visão dessas lideranças religiosas. Alguns acenos foram dados pelo presidente na direção do alívio junto ao Fisco, como o aumento para 4,8 milhões de reais do teto para que empresas se tornem isentas de declarar suas movimentações financeiras diariamente, o que beneficia de modo direto as igrejas, que, apesar de serem imunes à cobrança de uma série de impostos, têm de informar suas arrecadações à Receita. Outra tentativa de agrado envolveu a recente intenção do presidente de isentar os templos religiosos de pagar a conta de luz. Em um dos primeiros compromissos oficiais de 2020, Bolsonaro recebeu Romildo Ribeiro Soares com integrantes da bancada evangélica, incluindo um dos filhos do pastor, o deputado David Soares (DEM-SP). No dia seguinte, o presidente esteve com o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, a quem encomendou um estudo para verificar a viabilidade de desonerar os templos religiosos da cobrança de energia elétrica. A ideia teria partido de Bolsonaro, que não consultou a bancada evangélica sobre o “presente”. Diante da negativa da equipe econômica, porém, o capitão recuou.
Além do montante milionário de dívida ativa da União atribuído às entidades religiosas, o sistema da Receita mostra que alguns dos pastores constam da relação de devedores com suas empresas privadas — que ficam de fora da imunidade tributária concedida às igrejas. A produtora de TV Rede Mundial de Comunicação, do pastor Valdemiro Santiago, líder da Igreja Mundial do Reino de Deus, aparece no sistema do Fisco como devedora de 6,1 milhões em impostos. A Mundial também figura com destaque no ranking das igrejas na mira do Fisco, com 85,9 milhões de reais. Entre as companhias privadas, consta a gravadora de música gospel de Silas Malafaia (1,2 milhão de reais de impostos devidos).
As pendências tributárias das igrejas e das empresas dos pastores são contestadas por seus advogados (nenhum dos representantes procurados por VEJA quis conceder entrevista). Em linhas gerais, as defesas dizem que a cobrança do INSS é indevida, pois quase toda a força de trabalho dos templos tem funções missionárias, não podendo as pessoas que as exercem ser enquadradas como funcionárias. No caso da pendência relacionada às companhias privadas, os líderes religiosos alegam que as empresas fazem parte da propagação da fé e, por isso, não deveriam ser cobradas pelo Leão.
Para as lideranças religiosas, as cobranças são uma forma de perseguição política que começou com os governos petistas e ganhou um novo impulso em 2018. Foi quando o ex-presidente Michel Temer instituiu a plataforma eSocial, que permitiu a escrituração digital de obrigações fiscais. A partir disso, o Fisco passou a detectar com mais eficiência débitos trabalhistas, como a cota patronal do INSS. Em muitos casos, a Receita desconfia que o pagamento de salários das igrejas é escamoteado sob a rubrica da chamada prebenda, o repasse de recursos financeiros a religiosos, que não deve ser tributado segundo a legislação. “Algumas entidades cresceram tanto que possuem estrutura de grandes empresas e realizam atividade comercial”, diz a professora de direito tributário da FGV Tathiane Piscitelli. “É dever do Estado tributar isso.” Enquanto os advogados das igrejas discutem com o Fisco a dívida acumulada, a bancada evangélica se organiza para fazer pressão em 2020 a fim de que a reforma tributária simplifique a prestação de contas de seus templos. Simplificar, no caso, significa criar mecanismos para afastar os pastores da cova do Leão.
Por Veja / Abril