Quando agentes de segurança do Estado ceifam vidas, sejam elas criminosas ou não, as famílias devem ser indenizadas. Esse é o entendimento do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) em duas decisões recentes. Em um dos casos, a esposa e os três filhos de um motorista serão indenizados, cada um, em R$ 100 mil pela morte do pai. Eles também receberão pensão mensal como indenização por danos materiais. 

O caso aconteceu em junho de 2003, na cidade de Campo Formoso. Segundo a decisão, a vítima foi surpreendida pelo agente militar, exigindo uma carona para o município de Pindobaçu. Ele negou a carona e teve a vida ceifada com um tiro. A família pediu indenização individual de R$ 200 mil. Em sua defesa, o Estado da Bahia alegou que o policial não estava em serviço e que a arma era particular. O policial foi julgado na área criminal, e foi condenado por homicídio por motivo fútil em júri popular. Na sentença, a juíza Geysa Rocha Menezes, da Vara de Consumo, Cíveis e Comercias de Campo Formoso, afirmou que o próprio policial confessou à Corporação que estava retornando de um serviço em Campo Formoso, e que realmente atirou no motorista. 

Para a magistrada, o fato de a arma ser privada não diminui a aparência de que o policial estava em serviço, por estar fardado e portar um revólver. “Certamente se os mesmos fatos tivessem ocorrido quando o agente militar estivesse de trajes civis e se, em nenhum momento, fizesse referência ao fato de ser Policial Militar, a excludente de responsabilidade mereceria acolhimento”, escreveu a magistrada na sentença de piso. Desta forma, a juíza considerou que o Estado deveria ser condenado por ser responsável civilmente pela morte, devido ao “nexo de causalidade”. “A comprovação da culpa exclusiva do Estado, por ato de reprovável violência policial, praticado por agente da Polícia Militar fardado, que tirou covardemente a vida de um pai de família, torna indiscutível que houve dano moral suportado pelos autores”, assinalou Geysa Rocha. Para ela, a dor da família, certamente, “refletiu de forma intensa, em seu estado psíquico e emocional, sendo as lesões aptas a ensejar compensação financeira”. Ela fixou a indenização por pessoa no valor de R$ 150 mil, mais pensão mensal de 2/3 do salário mínimo até o ano em que a vítima completaria 71 anos. 

O Estado recorreu sob o argumento que a decisão ultrapassou o que foi pedido na ação. Também alegou prescrição, tendo em vista que o crime aconteceu em 2003 e a ação foi ajuizada em 2012. Sustentou que o crime “não teve relação com suas atividades policiais, equivocando-se quanto ao fato de que o policial militar não se encontrava em serviço no dia do fato”, não se justificando, dessa forma, “a teoria da responsabilidade objetiva sobre o Estado, porquanto essa impõe a atuação direta de agente público no exercício das funções para o resultado danoso”. Sobre a pensão vitalícia, alegou que o alcance da maioridade pelos filhos extingue o poder familiar e o dever de sustento. A pensão, assim, deveria cessar quando os filhos completassem 18 anos. Observou ainda que a família pediu o pagamento de pensão até os filhos completarem 25 anos. 

A relatora do recurso, desembargadora Márcia Borges, da 5ª Câmara Cível do TJ-BA, acatou o pedido e reduziu a indenização para R$ 100 mil por pessoa, por entender que o valor de R$ 150 mil, no somatório, chegaria a R$ 600 mil e ultrapassaria o valor compreendido como razoável pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em casos com morte. A desembargadora, entretanto, refutou o argumento do Estado de que não seria possível acumular o recebimento da pensão mensal via judicial e a pensão por morte da previdência. Ela considerou que as origens são distintas, com finalidades distintas. 

Outro caso aconteceu há 26 anos. Na ação, uma mulher relata que o filho saiu de casa por volta das 18h30 junto com o primo para a casa de um vizinho. No caminho, foram abordados por policiais militares. Eles ordenaram que os dois levantassem os braços e proferiram ameaças. Um dos policiais, sem qualquer motivo, deferiu um tiro de escopeta a queima roupa no filho da autora da ação, causando-lhe a morte por "laceração cardíaca por projetil de arma de fogo". Ela pediu indenização e pensão mensal até quando o filho completasse 65 anos. De acordo com os autos, o filho da autora não havia praticado nenhum delito para justificar o disparo do projétil por parte do policial. Tanto que, depois do crime, os policiais saíram do local e outra guarnição compareceu no local para fazer o levantamento cadavérico. Para a juíza Milena Oliveira Watt, da 6ª Vara da Fazenda Pública de Salvador, o Estado, através do policial, foi o único e exclusivo responsável pela morte do filho da autora. 

Na sentença, a juíza assinala que os danos morais sofridos pela mãe são visíveis, e que o trauma psicológico causado com a morte de um filho é irreparável, “principalmente por se tratar de um jovem de apenas 22 anos, com uma vida inteira por viver e com todos os sonhos a realizar”. Ela fixou a indenização em R$ 150 mil por danos morais mais pensão de 1/4 do salário mínimo desde a data do óbito até o ano em que o filho completaria 65 anos. 

O Estado recorreu alegando que a mãe não poderia receber pensão mensal mais pensão previdenciária. De acordo com a relatora do caso, desembargadora Gardênia Duarte, da 4ª Câmara Cível do TJ-BA, as provas dos autos demonstram que a vítima ajudava no sustento da família, por isso a pensão é necessária. Ele vendia picolé e entregava parte do dinheiro à mãe e trabalhava como servente de pedreiro. A desembargadora ainda salientou que a jurisprudência do STJ é no sentido de, em caso de família de baixa renda, indenizar por danos materiais, com pensionamento mensal. Ela manteve a decisão de piso. 

O que diz a Constituição

De acordo com o juiz, professor e constitucionalista Dirley da Cunha Júnior, o Estado tem a obrigação de reparar as famílias em casos de mortes provocadas por seus agentes. “Essa responsabilização não depende de comprovação de qualquer culpa. O Estado responde independente da culpa. Essa obrigação é chamada responsabilidade objetiva do Estado”, explica. O magistrado afirma que a responsabilidade tem previsão constitucional, no artigo 37, § 6º da Constituição Federal: “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”. 

Dirley da Cunha ressalva que, quando o Estado é condenado a indenizar famílias, ele deve entrar com uma ação regressiva contra os agentes que causaram o ato que ensejou a indenização para ressarcir o erário. “Mas essa ação depende da comprovação da culpa daquele agente, pois são relações jurídicas diferentes, por ser uma responsabilização subjetiva”, sinaliza. Quando o agente acusado não tem recursos para reparar o Estado, o erário fica sem a recomposição do recurso público utilizado na indenização. Em alguns casos, conforme explica o jurista, o salário do agente pode ser penhorado em até 30% para garantir a recomposição. 

Sobre o tempo de proposição da ação, Dirley da Cunha diz que ela deve ser proposta o quanto antes para evitar prescrição, e afirma que a ação para reparação por danos não precisa aguardar uma decisão condenatória do agente público na área penal. “As instâncias são independentes. Aguardar uma decisão condenatória na área penal e ingressar com uma ação de execução pode demorar anos”, avalia. 

Ainda que a vítima detenha envolvimento com o crime, se ficar comprovado que o Estado praticou uma violação ou uma violência através do agente público, no exercício da função, a indenização, ainda sim, é devida. “A família das vítimas pode acionar o Estado por responsabilidade objetiva, não cabendo à família comprovar culpa por parte dos agentes do Estado. Basta que os agentes estejam no exercício da função para causar os danos”, frisa. 

Dirley conta que é recorrente a busca de reparação das famílias por parte do Estado no Judiciário. A reparação só não ocorre quando o Estado comprova que a vítima deu causa ao próprio dano, como uma troca de tiros, ou quando o agente agiu em legítima defesa, no chamado “auto de resistência”. “Mas é o Estado que tem que comprovar essa causa excludente de responsabilidade. A família não tem que comprovar nada”, reforça o jurista. 

Por Cláudia Cardozo

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