Sem ter sido consultada e muito menos esclarecida sobre os riscos a que estaria sendo exposta, a população do distrito Pedra Branca, em Jacobina, foi cobaia de um experimento realizado entre 2013 e 2015, com autorização da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio). Durante esse período, os 1.144 moradores foram infestados com milhares e milhares de Aedes aegypti geneticamente modificados (GM) pela empresa Oxitec. Participaram a organização social Moscamed e a Secretaria Municipal de Saúde. Aparentemente inofensivos, tinham a missão de copular com fêmeas do Aedes comum e transmitir aos descendentes uma proteína capaz de matá-los antes de chegar à idade reprodutiva. Pela propaganda, os insetos GM não se reproduz com outras espécies e muito menos se perpetua no ambiente.
O objetivo era reduzir a população de Aedes selvagem, responsável pela transmissão do vírus e mais de 1.800 casos de dengue no município em 2012. Embora a Oxitec afirme que ao final do projeto tenha reduzido em 92% a população dos mosquitos da dengue, em 19 de agosto de 2014 o prefeito de Jacobina, Rui Rei Matos Macedo, decretou situação de emergência no município em virtude da doença.
Fracassada no combate ao mosquito “do mal”, a tecnologia do Aedes “do bem” pode ter causado alterações ecológicas ainda desconhecidas em Jacobina. Isso porque os milhões de transgênicos OX513 liberados na pequena cidade do sudoeste baiano transferiram seus genes modificados em laboratório para a população natural de Aedes. Ou seja, os transgênicos teriam se reproduzido e podem ter se perpetuado no ambiente. O dado foi revelado nesta terça-feira (10) em artigo publicado no boletim eletrônico Scientif Reports, do grupo Nature Research.
Pesquisadores da Universidade de Yale, nos Estados Unidos, da Universidade de São Paulo, do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Entomologia Molecular e da Moscamed Brasil que assinam o estudo afirmam se tratar de uma “anomalia”. Conforme a amostra e o critério utilizado para definir essa troca genética – tecnicamente chamada de introgressão – pode-se dizer que de 10% a 60% de mosquitos têm pelo menos um gene do OX513A.
Ainda segundo o artigo, amostras de genes dos Aedes selvagens coletadas em períodos de seis, 12 e 27 a 30 meses após o início da soltura dos transgênicos trazem claras evidências de que porções do seu genoma foram incorporadas pela população de insetos que deveria ter sido reduzida. “Evidentemente, descendentes híbridos e raros são suficientemente robustos para poder se reproduzir na natureza”, supõem os cientistas. Por isso eles recomendam que haja programa de monitoramento genético durante a liberação de organismos transgênicos para detectar “conseqüências imprevistas”.
Troca de genes
“O estudo mostra que houve uma troca de genes, e que nessa troca os mosquitos comuns incorporaram genes de uma outra variedade, transgênica, resultando em insetos híbridos, que geralmente têm maior vigor, são mais potentes, sobre os quais ainda não há estudos. Muito menos quanto à sua eficiência na transmissão de vírus, que pode inclusive ser maior. O que temos agora é um ‘super mosquito’, mais resistente, que pode se desenvolver em ambientes em que outros talvez não se desenvolveriam”, avalia o biólogo José Maria Gusman Ferraz, pesquisador do Laboratório de Engenharia Ecológica da Unicamp e professor da pós-graduação do Centro Universitário da Fundação Hermínio Ometto (UniAraras).
Para ele, é salutar que tais resultados tenham sido encontrados em um estudo que envolveu especialistas que conhecem bem de perto as experiências nas cidades do interior baiano, como a professora Departamento de Parasitologia do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, Margareth de Lara Capurro, e o geneticista Aldo Malavasi, professor aposentado do Departamento de Genética da USP e atual diretor da Moscamed.
Na qualidade de integrante da CTNBio, em 2013 Ferraz visitou a cidade de Juazeiro, na Bahia, que desde 2011 vinha sendo infestada com mosquitos da Oxitec. O objetivo da visita técnica era conhecer o laboratório onde os insetos soltos ali e em Jacobina estavam sendo produzidos. Verificar, por exemplo, se não estavam vazando larvas pelo ralo ou outras situações semelhantes, indesejáveis, bem como estavam sendo feitas as liberações no ambiente e como a população estava se relacionando com a novidade.
Em seu relatório, pedia a suspensão da soltura dos insetos transgênicos nas duas cidades até que fossem feitos mais estudos de impactos à saúde e ao meio ambiente. E destacava o desprezo pela segurança da população, reduzida a cobaia. Primeiro porque a própria comissão de biossegurança, que deveria desempenhar o papel para o qual foi criada, enquadrou o inseto GM na classe do risco 1 (baixo risco individual e baixo risco para a coletividade) quando deveria ser classe 2 (moderado risco individual e baixo risco para a coletividade), conforme fontes ouvidas pela RBA.
E depois porque os moradores afetados receberam apenas informações sobre o mosquito transmissor de vírus causadores da dengue e sobre a doença propriamente dita. Nada foi falado sobre os riscos dos insetos transgênicos à sua saúde e ao ambiente. Para completar, não assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, praxe em casos de participação em experimento. E sequer foram apresentados – e nem a CTNBio exigiu – pareceres de comitês de ética humana e animal das instituições responsáveis, uma vez que pessoas seriam picadas e teriam seu sangue em contato com os insetos, estando sujeitas a infecções entre outras intercorrências.
O pesquisador anotou ainda a omissão da Oxitec em informar a taxa de sobrevivência do mosquito desenvolvido em seus laboratórios, já que a técnica não garante 100% de esterilidade nos machos produzidos. E questionou os níveis mínimos de contaminação da água pelo antibiótico tetraciclina necessários para a sobrevivência do seus insetos. O dado está diretamente associado à expectativa de aumento da população de mosquitos GM e aos consequentes desequilíbrios ambientais.
Desprezado pela CTNBio, o relatório de Ferraz questionava ainda a falta de estudos sobre o desempenho dos machos transgênicos quanto à cópula com fêmeas de Aedes. “A possibilidade desse mosquito permanecer no ambiente, bem como de cruzamento com GM, tudo isso foi alertado, mas desprezado pela maioria dos integrantes da comissão. Então foram direto a campo e despejaram os mosquitos no ambiente, onde vivem pessoas”, disse o pesquisador.
Vista grossa
A experiência em Jacobina foi autorizada pela CTNBio em dezembro de 2012. No extrato do parecer 3.541/2012, publicado no Diário Oficial da União, o então presidente Flávio Finardi Filho declarou que “o processo (01200.002408/2012-74) descreve as condições de biossegurança propostas para a liberação, as condições gerais para a condução do experimento e a qualificação da equipe de pesquisadores envolvida no projeto”. E que a “Comissão considerou que os protocolos experimentais e as demais medidas de biossegurança propostas atendem às normas da CTNBio e à legislação pertinente que visam garantir a biossegurança do meio ambiente, agricultura, saúde humana e animal”.
Mas a Oxitec, como bem lembrou Ferraz, omitiu uma série de informações. Chegou a arrancar páginas do dossiê, alegando sigilo, e a comissão de biossegurança fez vista grossa. Mesmo sem ter feito estudos a respeito, lembrou, a empresa negou a possibilidade de implicações ecológicas do cruzamento entre mosquitos transgênicos sobreviventes e fêmeas de Aedes selvagem. E desprezou a capacidade da linhagem OX513A vir a cruzar com o Aedes albopictus, espécie que disputa espaço com o aegypti e que também é transmissor de diversos vírus.
Atropelando normas internas, a maioria dos componentes da CTNBio aprovou em abril de 2014 o pedido de liberação comercial do Aedes GM. Até então não havia sido feita ainda avaliação técnica do experimento em Jacobina, o que só veio a acontecer em 2018. E o relatório apresentado à comissão, segundo fontes, veio cheio de defeitos e imprecisões, espelhando toda a insegurança e irresponsabilidade que expôs a população a riscos desconhecidos e desnecessários. Mais uma vez prevaleceu a ciência nanica e comercial comum no âmbito do colegiado, salvo exceções, que desprezou organismos geneticamente modificados diretamente associados a vírus causadores de doenças graves em humanos.
O parecer sobre a liberação, bisonho, expressa o entendimento da maioria do colegiado, de que um único estudo, realizado por um pesquisador da Oxitec – Renaud Lacroix – mais o dossiê apresentado pela própria empresa pleiteadora do registro configurem um “conjunto considerável” de informações. Conforme destaca a ilustração, o parecer assinado pelo então presidente, Edivaldo Domingues Velini, argumenta que “embora ainda não exista uma experiência com a liberação comercial deste OGM, há um conjunto considerável de informações pertinentes advindas da liberação planejada deste mosquito em outros países”. E cita Lacroix et al., 2012.
Veja aqui a íntegra da matéria publicado pela Rede Brasil Atual.
Foto: Robson Guedes / Jacobina Notícias