A Funai (Fundação Nacional do Índio) acaba de iniciar uma expedição para realizar o contato com um grupo de índios Korubo no sul do estado do Amazonas. Eles vivem isolados na selva amazônica mas agora estão sob risco de um massacre.
A equipe de indigenistas deixou a base de vigilância da entidade no rio Ituí, na Terra Indígena Vale do Javari, na manhã do último domingo (3). Esse território, com 8,4 milhões de hectares, concentra a maior quantidade de referências de índios sem contato no país e possivelmente no mundo -há pelo menos 16, reconhecidas pelo governo brasileiro.
Uma operação para contatar os índios vem sendo pedida há mais de quatro anos por indígenas de uma etnia vizinha, os Matis, que chegaram a invadir uma base da Funai na região, em 2016, a fim de pressionar o órgão. Além disso, Korubo contatados em anos anteriores também passaram a demandar um encontro com seus parentes ainda isolados.
Os índios isolados que serão contatados vivem na beira do rio Coari, na mesma região. Junto com os funcionários da entidade, participam do esforço seis índios Korubo que têm familiares entre os isolados e poderão ajudar na aproximação. Eles são membros de duas comunidades, com cerca de 80 pessoas, alguns contatados em 1996 e outros entre 2014 e 2015. As famílias de contato mais recente viviam com o grupo que está sendo buscado agora, do qual se separaram logo antes do contato.
Os Korubo são conhecidos como "índios caceteiros" por não usarem arco e flecha mas bordunas, ou cacetes, para caçar animais maiores e em confrontos corporais (para animais pequenos e pássaros, usam zarabatanas). Ao longo das décadas passadas foram registrados muitos conflitos com outros índios e com invasores brancos em suas terras.
A operação de contato foi discutida no final do governo de Dilma Rousseff, planejada no governo de Michel Temer e agora desencadeada porque os Matis voltaram a alertar a Funai, em uma carta à presidência do órgão, sobre o risco de confronto iminente com os isolados. Em 2014, um choque entre as duas etnias deixou dois Matis mortos e um número indeterminado de vítimas entre os Korubo.
A Funai informou na época que ouviu dos Korubo a informação de que oito deles morreram no revide. O órgão teme que um massacre venha a se repetir a qualquer momento.
A expedição é chefiada pelo indigenista Bruno Pereira, que trabalhou por mais de cinco anos no Vale do Javari e hoje coordena o setor do órgão em Brasília especializado em povos indígenas isolados e de recente contato. "[O motivo da expedição] é a proteção física desse grupo", diz Pereira.
Em fevereiro, um sobrevoo da Funai na região do rio Coari identificou três malocas e cinco áreas de roça a apenas 21 km de uma aldeia dos Matis. "O risco de não fazer [o contato] é delegar à sorte. E a sorte para a gente tem dado resultados práticos: foram conflitos e morte. É delegar ao destino, que pode ser oito dias, oito meses ou oito anos. Mas essa proximidade de 20 km de onde os Korubos estão, dentro quase da aldeia Matis, é um cenário catastrófico, falta um milímetro, um cabelo [para ocorrer um confronto]."
Este será o primeiro contato provocado pela Funai desde meados dos anos 90. Com o fim da ditadura militar, em 1985, passou a ser adotada a política chamada de "não contato", consolidada em 1987, que evita aproximação com grupos isolados e mantém mínimos encontros com os grupos classificados como de "recente contato".
Nos anos 1960 e 1970, frequentemente os números chegavam a 90% de redução. Há grupos de centenas de índios reduzidos a poucas dezenas e vários casos de desaparecimento total de tribos em intervalos de 20 anos. Por isso, com o final da ditadura militar (1964-85), a entidade adotou a política de evitar a aproximação, a não ser em caso de grave ameaça a sua sobrevivência, como os técnicos entendem ser o caso neste momento.
"A gente pensa filosoficamente essa política [do não contato], como ela funciona eticamente. [...] Mas hoje a gente tem responsabilidade do Estado sobre a proteção física e cultural desse povo. Nesse momento, é a proteção física, tanto do povo Korubo quanto do povo Matis", disse Pereira.
Além da proximidade com os Matis, há o risco de encontros com grupos de caçadores ou pescadores ilegais da cidade de Atalaia do Norte, que frequentemente têm histórico de familiares mortos por Korubo isolados, no passado, e podem querer se vingar.
No ano passado, houve um episódio em que um grupo armado de Matis disparou contra esse grupo Korubo isolado. Não houve sinal de mortes, mas é grande a tensão entre membros das duas etnias.
A missão de contato vem sendo preparada há pouco mais de um ano. Quando a Folha acompanhou a expedição do fotógrafo Sebastião Salgado à região, em outubro de 2017, os Korubo contatados em 2015 manifestavam intenso desejo de encontrar os parentes que ficaram na floresta. Logo que a reportagem deixou a região, um grupo deles fez uma longa viagem de barco para tentar encontrar os isolados. Sem sucesso, quando começou a acabar a temporada de chuvas e os rios deram sinal de que ficariam menos navegáveis, os Korubo pegaram as canoas e voltaram para suas aldeias no rio Ituí, no norte da Terra Indígena.
A gota d'água para a decisão de provocar o contato foi o conflito no ano passado com Matis: os isolados podem ser presas fáceis de índios ou não-índios armados que atuam em torno da região por onde perambulam atualmente. Mesmo assim, muitos indigenistas que apoiam a política do não contato se manifestaram contra.
Os Korubo que a Folha visitou em 2017 são formados por índios de três contatos diferentes: em 1996, 2014 e 2015. O de 1996 foi o mais famoso: a expedição foi comandada pelo indigenista Sydney Possuelo, ex-presidente da Funai, com ampla cobertura da imprensa brasileira e internacional.
O grupo tinha sofrido diversos ataques de não-índios e um surto de malária. Eram 21 índios, haviam perdido os homens mais velhos que exerciam liderança no grupo e eram comandados por uma mulher, por isso chamado "Grupo da Mayá", seu nome. Na época, participaram do contato índios da etnia Matis, de língua semelhante ao Korubo, que se tornaram próximos. Alguns Korubo logo aprenderam o idioma, que se tornou sua segunda língua. Em 2014, um grupo de cerca de 15 pessoas em torno de uma mesma família buscou contato com pescadores não-índios em aparente desespero por doenças.
Em 2014, alguns índios Matis instalaram roças próximas da área onde estavam morando os isolados. Essa convivência à distância durou por algum tempo até que uma criança Korubo morreu, talvez por doença contagiosa. Os isolados atribuíram a morte aos Matis e mataram dois líderes dessa etnia, que estavam na roça.
O ataque despertou uma espécie de fúria Matis em toda a região. Há grupos dessa etnia com pouco contato enquanto outros convivem com os não-índios há mais tempo e inclusive têm espingardas de caça. Uma expedição punitiva buscou vingança. Ao encontrar os Korubo, mataram e feriram um número incerto de pessoas. Como vestissem roupas, os atacados achavam que os homens armados eram brancos.
Feridos e desnorteados, os sobreviventes do grupo isolado discutiram se deveriam buscar ajuda. As famílias se dividiram quando outra parte procurou uma aldeia de índios próxima enquanto outros fugiram para a floresta: cerca de 15 se aproximaram. A aldeia era exatamente da etnia Matis. Com medo de serem vítimas de um novo ataque, os Matis chamaram pelo rádio a Funai, que fez o contato. Os que ficaram na floresta são esses que agora serão atraídos, no rio Coari.
Desde então há tensão entre índios dos diferentes grupos e os Korubo têm medo do que pode acontecer com seus parentes (há pais com filhos isolados e filhos com pais isolados, assim como casais separados).
Há ainda um segundo grupo de Korubo isolados, estimados entre 30 a 50 pessoas, separados já antes de 1996, que vivem na região do rio Curuene, longe dessa área mais tensa da Terra Indígena Vale do Javari. Sobre esse grupo, possivelmente maior, não há discussão de contato. Os monitoramentos feitos não indicam riscos à sua segurança e a área onde perambulam não é exposta a malária ou outros surtos de doenças fatais para eles.
Cenários
Os Korubo que já mantêm algum tipo de contato com a população não indígena são, ao todo, 88 pessoas. Sobre os isolados, não há número preciso, mas a Funai estima que sejam cerca de 28 no grupo do Coari a ser contatado (dez homens, doze mulheres e seis crianças). Em contrapartida, há mais de 500 Matis na região.
A expedição, que não tem prazo definido para acabar mas tem como limite a chegada do período da seca, quando a navegação se torna mais complicada, inclui servidores da Funai, um médico, dois técnicos de enfermagem e um laboratorista e 16 índios das etnias Kanamari, Marubo e Matsés, além dos seis Korubo já contatados em ocasiões anteriores. A missão da Funai pode durar dias, semanas ou meses, até que os Korubo sejam localizados. Marubo, Matis, Matsés e Korubo falam línguas semelhantes, do tronco linguístico Pano, podendo comunicar entre si.
Da base ambiental do órgão localizada no rio Ituí até o local em que os índios devem estar são cerca de 290 km de barco. A Funai emprega uma embarcação grande, quatro botes de alumínio e, numa base à distância, um helicóptero do Exército para uma emergência. A ação também é apoiada pela Sesai (Secretaria de Saúde Indígena) do Ministério da Saúde e pelas polícias Militar e Federal e acompanhada pelo Ministério Público Federal.
Ao longo de meses, a Funai estudou os prós e contras do contato no Javari e constatou "risco alto" em quatro indicadores importantes: "relatos de avistamento de isolados no entorno, proximidade comprovada com tensionamento/incidência de doenças infectocontagiosos, demanda/vontade/determinação do reencontro com seus ex-corresidentes e diálogo propositivo limitado entre os Matis e a Funai".
Para a Funai, o melhor cenário possível na expedição seria uma boa interação e um bom diálogo entre os diferentes grupos Korubo, a fim de que os isolados entendam o risco que estão sofrendo se continuarem as escaramuças com os Matis. O pior cenário é que os isolados, após o contato com os parentes previamente contatados, acabem infectados por alguma doença mas, sem saber, se embrenhem na mata. Nesse caso, a Funai terá que ir ao encontro de cada índio para o tratamento de saúde. Com tudo isso avaliado, a Funai decidiu desencadear a expedição.
Os seis homens Korubo que acompanham a expedição em curso são: Takvan Vakwe, Malavó e Txitxopi, do contato de 1996, e Xuxu, Ixovo e Melanvo, contatados em 2015. Eles e diversos outros do grupo são retratados nas fotografias de Sebastião Salgado produzidas em 2017, que foram tema de caderno especial da Folha em dezembro daquele ano.
Por Leão Serva e Rubens Valente / Fonte: Folhapress