Dedicada ao estudo das redes de comércio ilícito no mundo, a venezuelana Vanessa Neumann diz que a escolha de Sergio Moro para ministro de Justiça poderá inaugurar uma excelente fase de combate à corrupção no Brasil.
"Creio que será um ótimo caminho. Moro é excelente. E acabar com a corrupção foi um dos focos da campanha de Bolsonaro. Será uma excelente oportunidade de enfrentar o problema de suas fronteiras. O Brasil perde R$ 165 bilhões por ano nessa região", diz a analista.
Neumann veio ao Brasil na semana passada lançar o livro "Lucros de Sangue", na qual propõe uma intrigante questão: qual a relação entre o contrabando de cigarros no Brasil e ataques terroristas na Europa ou África?
Presidente da Asymmetrica, consultoria de estratégias que atende governos e clientes corporativos empenhados em debelar redes de comércio ilícito, ela estuda há mais de uma década os impactos desses crimes em governos e sociedades.
O interesse pelo tema foi despertado em seu próprio país, ao examinar os papéis desempenhados pelo governo de Hugo Chávez e pelo tráfico de drogas para o fortalecimento das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia). "Comecei motivada pela raiva. Conheci garotos que perderam braços e pernas após atentados a bomba das Farc. Tudo isso financiado pelo narcotráfico. Não entendia por que meu governo estava apoiando grupos terroristas."
Mais recentemente, sua consultoria se dedicou a investigar o uso de recursos provenientes do contrabando e lavagem de dinheiro na América Latina para financiar grupos terroristas do Oriente Médio.
"O apoio da Venezuela a esses grupos, em especial do Irã, se manifesta de muitas maneiras. Terroristas usam a tolerância das autoridades para lavar dinheiro na Venezuela. O governo, é claro, fica com uma parte desses recursos. E muitos grupos usam estruturas do Estado venezuelano -militares, caminhões- para transportar drogas. O crime organizado transnacional destruiu meu país", lamenta.
Neste ano, Neumann e sua equipe produziram um relatório, batizado de Hidra de Ouro, a respeito das conexões ente o comércio ilícito na área da Tríplice Fronteira latino-americana (onde Brasil, Argentina e Paraguai se encontram) e o Hizbollah libanês. O material originou um capítulo final exclusivo da edição brasileiro de seu livro.
Neumann conta que nessa região fronteiriça (formada por Ciudad del Este, no Paraguai; Foz do Iguaçu, no Brasil; e Puerto Iguazú, na Argentina) até 70% de todas as transações comerciais realizadas são ilícitas. Estima-se que isso gere cerca de US$ 43 bilhões anuais de dinheiro escuso.
Segundo a pesquisa, a organização criminosa mais poderosa do Brasil, o PCC (Primeiro Comando da Capital), estende seus braços de atuação em várias cidades paraguaias (Ciudad del Este, Salto del Guairá e Pedro Juan Caballero), além de pontos importantes em Colômbia e Bolívia.
Fontes de Neumann na Polícia Federal afirmaram que traficantes ligados ao Hizbollah ajudaram o PCC a conseguir armamentos em troca de proteção a presos libaneses em cadeias brasileiras.
"É uma interação cada vez mais comum. Terroristas aprendem um negócio lucrativo. Grupos criminais aprendem técnicas de terror contra o Estado, adotam muitas vezes um discurso político."
O cigarro é um dos principais produtos de contrabando na região da Tríplice Fronteira. A autora explica que já na década de 1990 esse comércio gerava fundos para grupos terroristas, como a Al Qaeda.
"Muitos grupos libaneses transportam juntos cigarros ilegais e drogas. O Hizbollah está envolvido em quase todos os negócios ilícitos."
O livro cita que cigarros contrabandeados do Paraguai deixam de arrecadar em impostos no Brasil sobre a venda de tabaco cerca de US$ 3 bilhões anuais.
Em todos esses casos na fronteira, dois problemas são recorrentes: a fragilidade da vigilância e a conivência das autoridades.
"O combate ao tráfico e ao contrabando requer tecnologia avançada, o uso de drones, de centros de inteligência, de acordos transnacionais, de informação compartilhada pelos países. A receita é conhecida, mas nada disso existe. Falta vontade política."
Neumann avalia que Moro deveria fazer da Tríplice Fronteira latino-americana um dos focos de sua gestão. A estrutura que vem sendo montada pelo ex-juiz federal tem como objetivos centrais o combate à lavagem de dinheiro, tanto para crimes de corrupção como para tráfico de drogas, e a integração entre policiais de todo o país.
"Esse tema da fronteira é de soberania nacional. Esses crimes estão chupando o sangue da segurança, da economia, dos negócios legítimos. E ainda infiltram no país grupos terroristas. Combatendo o crime na fronteira, já se cumpre com várias promessas do novo governo."
Sem a participação do consumidor, contudo, qualquer missão estará fadada ao fracasso, ressalta ela.
"O consumidor precisa saber das consequências de seu ato. Para derrotar a corrupção e o contrabando, não basta exigir ações do governo. Cada cidadão deve fazer a sua parte. A aparente vantagem de comprar um produto mais barato acarreta custos altíssimos para todos."
Com informações da Folhapress