‘Um adolescente morreu em confronto com a polícia. A vítima tinha envolvimento com o tráfico de drogas’. Você já leu isso, aqui mesmo. Às vezes, a ‘polícia’ é substituída, na frase, por ‘traficantes rivais’. Às vezes, os adolescentes não morrem. São baleados. São apreendidos.
É como se a segunda frase – ‘envolvimento com o tráfico de drogas’ – justificasse qualquer mal que venha a lhes ocorrer. “Infelizmente, a morte dele era algo que a gente já previa”, admitiu o pai de Valney do Rosário Pereira, 17 anos, morto numa operação policial no Engenho Velho da Federação, na semana passada, referindo-se ao filho.
O pai de Valney não está sozinho. Esse é o drama de muitos pais e parentes de adolescentes envolvidos com o tráfico em Salvador. O número de jovens apreendidos por tráfico passou de 23, em 2006, para 414, em 2016 – um aumento de 1.700% em dez anos, segundo dados da Delegacia do Adolescente Infrator (DAI).
“Eles começam como usuários drogas, daí partem para outras atividades. A maioria faz parte de facções”, explica a delegada Claudenice Mayo, titular da DAI. Segundo ela, a facção mais citada é o Bonde do Maluco (BDM), seguida do Comando da Paz e da Katiara. “O BDM é o mais comum, apesar de ser o mais novo. Temos percebido esse crescimento há uns três anos”, diz a delegada.
A aliança com o tráfico tem feito, inclusive, com que os jovens reproduzam uma lógica comum nos presídios: a separação por facções para segurança dos mesmos. “Evitam falar a infração para não serem mortos ou espancados e já dizem logo a qual facção pertencem para que a administração possa separá-los”, conta. Na própria DAI eles não são colocados juntos.
Valney tinha ligação com o tráfico de drogas onde morava – local que, segundo a polícia, é dominado pelo BDM. Além disso, a família também conta que ele já tinha sido baleado e estava jurado de morte. “Ele sempre andava em más companhias, chegava sempre tarde em casa, não queria sair dessa vida”, contou o pai, evangélico, separado da mãe do adolescente.
Tráfico e homicídios
Nas facções, cada um tem uma função. “Um é gerente (da boca), outro é olheiro, outro é vendedor... Cada um tem sua função determinada”, diz a delegada Claudenice. Nos bairros periféricos, a influência sob os jovens é ainda maior por causa da vulnerabilidade social causada por omissão do Estado.
O defensor público especializado em Infância e Juventude, Bruno Moura de Castro, explica que o jovem sente a necessidade de reafirmar sua identidade num grupo e passa a desenvolver funções subalternas no tráfico.
“Os adolescentes são a ponta desse sistema e é essa ponta que o aparato policial reprime primeiro. O Estado precisa se preocupar em controlar a origem porque a ponta é facilmente reposta. Morre um jovem e no outro dia eles colocam outro. É por isso que o tráfico tem que ser pensado de uma forma mais ampla”, avalia.
Dos seis envolvidos na morte do cantor e compositor Felipe Yves em março, dois eram adolescentes. Todos faziam parte do BDM, que domina a região de Cajazeiras. "Infelizmente está mais comum (apreendê-los). Cada vez mais a gente tem visto adolescentes servindo aos traficantes, quer seja vendendo drogas, se posicionando como olheiros, passando informações, até matando, participando de execuções com o intuito de crescer no bando”, afirma o delegado Guilherme Machado, titular da 2ª Delegacia de Homicídios (Central).
Em 2016, adolescentes cometeram 20 homicídios em Salvador. Nesse caso, houve queda – em 2006, foram 27. Em outros anos, como 2008 e 2009, as ocorrências chegaram a 62 e 61, respectivamente. De acordo com a delegada Claudenice Mayo, 85% desses crimes têm alguma conexão com o tráfico. Os dados são da dissertação de mestrado dela, de 2015, da Universidade Federal da Bahia (Ufba).
[caption id="attachment_55468" align="aligncenter" width="620"] Rosicleide de Araújo Lima, 19 anos, foi apreendida duas vezes: "Todo mundo erra e eu precisei errar para encontrar ajuda. Meu sonho mesmo é ser jogadora de futebol", diz a garota (Foto: Divulgação)[/caption]
Famílias desfeitas
Para a promotora da Infância e da Juventude Edna Sara Cerqueira, um dos primeiros fatores que pode levar um adolescente a ingressar no tráfico é um núcleo familiar desfeito.
“É o que faz com eles fiquem sem direção, sem freio, sem carinho. Algumas vezes, é por falta de vocação das mães, o pai é praticamente inexistente. A mulher tem a necessidade de fazer os dois papéis. Elas estão dando uma declaração de amor aos filhos, mas nem sempre eles conseguem enxergar”, diz.
Aliado a isso, vêm outras necessidades – e o desejo de possuir itens. Segundo a promotora, muitos dos adolescentes infratores não vêem benefício na escola. Alguns, diz a promotora, chegam a tentar sair dos bandos, mas passam a ser ameaçados por isso. A maioria deixa de estudar no 6º ano do Ensino Fundamental. É o caso de Rosicleide de Araújo Lima, 19 anos, apreendida duas vezes, por uso de drogas, aos 17, e por roubo de celular, aos 18.
Na segunda infração, Rose roubou um celular para fazer o aniversário da irmã de 2 anos. A mãe dela, Rosane de Araújo Lima, 36, está desempregada e cria as duas filhas sozinha em Fazenda Coutos, no Subúrbio Ferroviário. O alívio veio quando Rose foi encaminhada para cumprir medida socioeducativa no programa Corra Pro Abraço, do Governo do Estado.
Lá, uma vez por semana, Rose faz um curso sobre Redução de Danos, onde aprende sobre os impactos físicos e sociais do consumo de drogas:os efeitos da substância, a estigmatização social dos usuários, racismo, violência, perseguição policial e outros temas. “Todo mundo erra e eu precisei errar para encontrar ajuda. Meu sonho mesmo é ser jogadora de futebol”, conta.
O programa oferece uma bolsa de R$250 para que ela possa pagar o deslocamento e continuar frequentando. Dona Rosane está orgulhosa das mudanças no comportamento da filha. “Ela tem um prazer imenso em participar, fica empolgada e até queria que fossem mais dias. Eu imagino ela voltando para a escola e tendo um bom emprego para me ajudar”, almeja a mãe. Rose está há um mês no curso e dividiu com a mãe o dinheiro que recebeu do projeto. Ela também ajuda a tomar conta da irmã mais nova enquanto Dona Rosane sai em busca de emprego.
A coordenadora do programa, Jamile Carvalho, conta que Rose até tentou voltar a estudar, mas as escolas têm criado mecanismos de exclusão de jovens que passam por medidas socioeducativas. Geralmente, as unidades dizem que não há vagas ou, quando há, desmotivam colocando-os para estudar à noite.
“Os pais acabam acreditando que o filho está perdido, desistem de matricular. E aí a possibilidade de irem para atividades criminosas é muito maior porque ficam sem horizonte, pressionados pela família porque já são adultos e precisam trabalhar”, explica.
A desestrutura familiar é um dos problemas, mas a delegada Claudenice não culpa os parentes. “Falta uma série de atividades atraentes para os jovens. Além disso, muitos pais saem cedo de casa para trabalhar ou procurar emprego e não têm como acompanhar o filho, não tem nem creche para deixar as crianças. E aí o tráfico entra como o motor de tudo porque quando o adolescente fica sem fazer nada é fácil aceitar a proposta do traficante”, justifica.
O coordenador do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente Yves de Roussan (Cedeca), Waldemar Oliveira, também aponta a falta de alternativas: “É necessária uma ação conjugada dos três governos, no sentido de propiciar atividades, tanto lúdica quanto profissional. É preciso que a família atue junto, acompanhe. Sinto que elas estão sem estabelecer limites a esses meninos”.
Furtos caem
Embora o número de apreendidos por tráfico tenha aumentado, a infração mais cometida por adolescentes há dez anos – o furto – passou de 622 ocorrências para 142 em 2016, uma queda de aproximadamente 77%. O que acontece é que, de acordo com a delegada Claudenice, se antes os jovens cometiam infrações como o silencioso golpe de “bater carteira”, agora, munidos de armas fornecidas pelos traficantes, eles preferem os roubos a mão armada, inclusive em ônibus.
N amanhã da última quinta-feira (13), quando o CORREIO esteve na sede da DAI, uma garota de 16 anos tinha acabado de ser apreendida pela Polícia Militar ao tentar assaltar um ônibus no Aquidabã. A jovem, que mora na região da Rótula do Abacaxi com uma tia, estava acompanhada de um ex-namorado, já adulto. Segundo a titular, quando as meninas se participam de infrações, é assim que costuma acontecer: com alguém por trás.
“Eles (adolescentes) preferem os roubos a coletivo porque acham que vão conseguir muitos objetos no mesmo lugar”, explica Claudenice. Era a quarta vez que a adolescente aparecia na DAI – as ocorrências anteriores foram averiguação, furto e desacato. Os pais moravam na Ilha de Itaparica, onde nasceu, mas ela não quis continuar lá. À delegada, contou que não gostava da família. “Os jovens relatam que precisam de dinheiro para comprar o que os pais não podem dar, como roupas de marca, celulares, tablets”, informa a titular.
Correio 24h
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