Chovia no Rio e Pedro Araújo acabava de ser abatido com um disparo na cabeça. Havia atendido um caso de violência doméstica e ia registrar a ocorrência quando cruzou com um bonde de criminosos armados numa região supostamente pacificada. Iniciou-se um tiroteio e Pedro, de 39 anos, foi atingido. Fardado e ainda agarrado ao seu fuzil dava para ver o cabo respirar agonizante. Estava sozinho, deitado de barriga para cima, num chão molhado e sujo. Ninguém o socorria. Pelo contrário. Um vídeo de quase dois minutos mostra como um grupo de moradores, assim como uma dezena de motoristas que passa pelo local, olham com indiferença seu corpo. Ele não parece ser alguém resgatável, mas sim um “cana fudidão” com “o maior buracão” na testa, como dizem durante a gravação. A única pessoa que se aproxima de Pedro é um rapaz de blusa listrada para roubar sua arma. “Agarra o meiota!”, grita a turma se referindo ao fuzil automático leve 7.62 mm usado pelo PM. “São 20.000 [reais]!”.
Pedro, que tem salário de 2.900 reais, sete vezes menos que o preço do fuzil, se debate entre a vida e a morte desde o dia 28 de março. Ele foi visto por esses moradores como mais um membro da polícia que mais mata no Brasil. Mas ela também é a que mais morre, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. O vídeo da sua agonia foi mais um baque numa tropa que, este ano, enterrou um policial a cada dois dias. Quatro das 50 vítimas foram, ainda, selvagemente torturadas e depois carbonizadas por seus algozes, traficantes de drogas. No Rio, secar a farda no forno, atrás da geladeira, ou esconder a identificação no estepe do porta-malas virou protocolo de sobrevivência para muitos dos cerca de 47.000 homens da corporação.
Na passada quinta-feira, no gramado do cemitério Jardim da Saudade, na zona Oeste do Rio, duas fileiras de policiais militares batiam continência, com os olhos chorosos, diante de mais um caixão. Era o dia em que dois PMs foram flagrados executando dois bandidos rendidos no chão, após um confronto que também acabou com a vida de uma menina de 13 anos numa escola, mas era também o dia do enterro do soldado Fernando Santos, de 25 anos.
Fernando foi morto um dia antes ao tentar impedir um assalto, no bairro do Recreio. Levou um tiro no peito. Jefferson Cruz chorava a perda do seu amigo da infância entre gritos de desespero dos familiares: “Foi um ato heroico, mas eu perdi um irmão por uma profissão ingrata, que não dá condições aos policiais. Não tem armamento, não tem colete, não tem assistência social para a família. Ficamos a mercê da marginalidade, melhor armada que nossos policiais”.
PM do Rio Anselmo Alves, agente de uma blitz da Lei Seca em Queimados, na Baixada Fluminense, que foi baleado e morto ao fazer uma revista rotineira.
Se continuar nesse ritmo, o número de vítimas atingirá níveis só vistos em 1994 e 1995, quando começaram a ser registradas as mortes dos agentes e perderam-se 227 e 189 policiais, respectivamente, segundo dados da PM que incluiu também nessa contagem os falecimentos por acidentes de trânsito, suicídio ou causas naturais. Os números, apesar de menores nos últimos anos, beiram sempre os três dígitos anuais.
O PM Thiago Machado morreu em 2016 durante uma ocorrência. Há exatamente um ano que sua viúva, Fabiane da Cunha, chora cada dia e lamenta que o marido não mudasse de profissão. arquivo pessoal
Thiago Machado Costa, de 31 anos, que era campeão de kickboxing e liderava um projeto social para crianças, foi um dos 121 policiais militares na ativa assassinados em 2016, segundo números do Instituto de Segurança Pública. Ele amava ser policial mas começou a sentir medo de morrer. A viúva, Fabiana Da Cunha, de 44 anos, que recebe sua pensão com constantes atrasos devido à incapacidade financeira do Estado, lamenta todos os dias que a decisão do marido de mudar de profissão chegasse tarde demais. “Ele começou a dizer que queria sair da PM no dia em que ajudou a socorrer um amigo baleado, um ano antes de morrer. Dizia que estava com medo de acontecer a mesma coisa com ele. Começou a estudar para outros concursos, queria ser bombeiro”, lembra Fabiana aos prantos. “Ele arrastou e conseguiu tirar o amigo do alto do morro e levá-lo para o hospital, mas não resistiu. Thiago tinha a farda cheia de sangue, chorava igual criança e foi obrigado, mesmo assim, a cumprir seu horário até o final”.
O soldado estava no WhatsApp com sua mulher quando foi alertado pelo rádio do roubo de um carro em Niterói, a área onde patrulhava, na região metropolitana de Rio. Começou uma perseguição e um tiroteio e Fabiana ficou aguardando uma mensagem que nunca chegou. Thiago foi baleado na cabeça e morreu uma semana depois. “Eu não tenho mais chão, nosso casamento era um conto de fadas. Ele era importante para as pessoas que o conheciam, era um bom policial, um homem honesto, mas hoje não é mais que um número. E isso para quê?”, questiona a viúva. “O dono do carro roubado até reclamou por não ter conseguido recuperá-lo”.
Salários baixos e armas obsoletas
Destrinchar as causas das mortes de policiais ganhou prioridade na corporação, desprestigiada pelos excessos, mas também castigada pela crise do Estado –chegou a faltar alimentos nos batalhões– e o aumento da violência. Uma comissão de PMs estuda hoje o fenômeno e acaba de apresentar suas conclusões em um documento interno que expõe as feridas abertas da PM fluminense. Segundo o relatório, ao qual o EL PAÍS teve acesso, as causas das mortes dos agentes passam por um mau treinamento que pouco tem a ver com a realidade das ruas – o policial não treina com alvos em movimento, por exemplo–, chegando a armas e coletes obsoletos e veículos não blindados. Faltam também protocolos que tornem o soldado capaz de reagir ou escapar de emboscadas. O mesmo documento aponta os baixos salários que obrigam os PMs a viverem em áreas de risco e assumir trabalhos complementares, os ilegais bicos, assim como a corrupção na corporação – há policiais que morrem pelo envolvimento em atividades criminosas. Completa a lista a cobrança por uma lei mais rígida sem progressão de pena, embora em 2015 as condenas pelos crimes contra agentes de segurança tenham sido endurecidas.
Apesar de mais de dois terços dos policiais morrerem durante sua folga, quando estão mais expostos, distraídos e desprotegidos, a quantidade de agente que morre matando –cada vez mais– revela os níveis de violência aos que o Rio chegou, numa guerra que justifica vítimas de ambos os lados. Os confrontos no Estado, 4.212 em 2016, aumentaram 300% em apenas cinco anos, segundo dados do relatório da PM. Com os tiroteios cresceu a morte de policiais (275%), mas também de “marginais” (66%), como são denominadas genericamente pela corporação as vítimas nos confrontos. A cada policial morto, morrem 23 “marginais”, segundo dados da Inteligência da PM. Isto é: pelos 30 PMs mortos em confronto em 2016, morreram 701 supostos bandidos. “A sensação de vulnerabilidade que o policial vive aumenta nossa necessidade de reagir. Você imaginar que um PM do Rio, que vive o confronto todo dia, que vive numa zona de guerra, é um cara equilibrado é impossível. Você está mergulhado na guerra”, avalia a coronel Viviane Duarte, um dos seis membros da comissão da PM sobre vitimização policial.
“Quando o soldado ingressa na polícia já é um morto vivo, porque acaba sendo vítima e refém dos preconceitos de uma política pública errada. Há toda uma construção para fazê-los acreditar que são heróis, que devem morrer pelo dever”, avalia Jaqueline Muniz, professora de graduação em segurança pública da Universidade Federal Fluminense. “Eles precisam acreditar que vão morrer em nosso nome, para que consigam aceitar a cultura de guerra contra o crime, uma espécie de cortina de fumaça para acobertar as relações entre os setores do Estado e as facções criminosas do Rio”, completa. Para ela, a polícia deve ser pública e estadual, mas no Rio é particular “e atende a interesses criminosos dos poderosos. A corrupção política vende e silencia a autoridade policial, deixando o agente da esquina inseguro no seu trabalho. Assim temos uma polícia forte para os fracos e fraca para os fortes”, conclui Muniz.
O sargento reformado Milton Pinto, de 50 anos, sobreviveu à sua própria execução. Depois de fazer umas compras a pedido da sua mulher, o carro de Pinto teve um problema de temperatura que o obrigou a parar num posto de gasolina em Campo Grande, na zona oeste da cidade. Apareceram então três homens armados. “Eu tinha minha pistola, tentei reagir, mas não tive tempo. Entraram no meu carro, me perguntaram se eu era policial e respondi que sim. Tinha muito orgulho de ser PM”, relata ele pelo telefone de Magé, a 60 quilômetros do centro do Rio. “Fui levado para dentro de uma favela para ser executado. ‘Deixa eu matar logo!’, gritavam. Levei o primeiro tiro dentro do carro, mas meti a mão na porta do motorista e consegui sair. Levei mais dois tiros. Só Deus sabe como consegui correr, pular dois muros e ser socorrido”, lembra. Dez anos depois, por medo da família, Pinto não vai nem ao shopping. “Fiquei traumatizado”.
O tenente tem clareza sobre quem é o culpado por tanta morte: o Estado. “O Estado está formando mal e bota um garoto na rua com cinco tiros de treinamento. O Estado também remunera mal, o policial não ganha o suficiente para se permitir não trabalhar nas folgas e, ainda, tem que morar em área de risco”, critica ele. “O Estado teria que dar condições dignas de trabalho, moradia, ajudar na educação dos filhos... mas perdeu a mão”. Pinto, que se voltasse atrás tentaria ser mais rápido ao pegar sua arma, reconhece que não consegue deixar a pistola em casa, embora saiba que é um risco.
O uso de armamento por policiais de folga é uma das questões mais controversas no debate sobre a letalidade e vulnerabilidade dos agentes. O assunto foi motivo de polêmica semanas atrás quando o diretor da Divisão de Homicídios, Rivaldo Barbosa, afirmou que "se os policiais assaltados não usassem armas, 80% deles não teriam morrido". Barbosa pretendia explicar que a arma, muitas vezes, expõe o policial como tal e acaba sendo mais um salvo-conduto direto para a morte do que uma proteção. Sua análise enfureceu parte da tropa, que viu na fala um convite para desarmar policiais, mas ela tem respaldo também na PM. Mesmo que isso signifique reconhecer que lutam em uma guerra de perdedores. A coronel Viviane Duarte concorda. “É um fato que o Rio de Janeiro se tornou tão perigoso que levar uma arma acaba expondo o policial. Ele acha que está mais seguro armado, mas se ele fosse sem arma e não identificado como policial, não teríamos a proporção de vítimas que hoje temos”, avalia Duarte. “Agora, o policial ouvir que tem que se esconder é muito constrangedor. É vergonhoso. É reconhecer que está perdendo a guerra”.
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