O sertão pegava fogo, o sol chupava os poços e o casal sonhava desgraças. Se achassem água ali por perto, beberiam muito, sairiam cheios, arrastando os pés. Quando escreveu Vidas Secas, em 1938, Graciliano Ramos não conhecia os lavradores Matheus Dias, 19 anos, e Valquíria Oliveira, 19, mas conhecia Fabiano e Sinhá Vitória.
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Os da vida real ainda parecem estar na puberdade, mas já são castigados pela seca desde os primeiros dias da vida – tal qual os da ficção. Para cuidar da rotina da casa, Matheus e Valquíria precisam buscar água longe. Diariamente, saem para pegar água em um riacho que fica a alguns minutos de onde moram, já numa das áreas mais pobres do centro de Morrinhos, povoado na zona rural de Feira de Santana, no distrito de Jaguara. Na casa sem pintura onde moram há seis meses com o filho Allysson, 3, não existe água encanada.
[caption id="attachment_50925" align="aligncenter" width="1209"] Valquíria Oliveira, 19 anos, e Matheus Dias, 19, são como Sinhá Vitória e Fabiano dos dias atuais (Foto: Mauro Akin Nassor/Correio)[/caption]
“Aqui (nos baldes), é água salgada. Água doce é no tanque, mas o tanque está seco. A gente tem que sair procurando até achar onde tem água”, revela Valquíria. Matheus nem sabe direito quando foi a última vez que choveu. “Para falar a verdade, não lembro quando vi uma seca como essa.
Nunca vi até hoje. Tá mostrando o chão, capim não mostra mais não. Ali era. Aqui também. Todo canto era verde. Zona rural é mais mato, onde olha é verde. (Hoje), não vê mais verde mais aí. São poucos, poucas coisas", diz, apontando para os lados.
A cerca de um quilômetro dali, a lavradora Ana Rita Oliveira da Silva, 45, vê o declive que funcionava como um poço de água secar todos os dias.
É o buraco onde a vaca Rainha, do primo de seu marido, ficou presa por horas, depois de tentar beber um pouco da água enlamada. E é a mesma fenda a qual recorreu tantas vezes, quando não tinha água em lugar algum. Assim como para o gado e outros animais, aquele açude natural era a fonte de água dela e da família.
"Aqui, quando chove, fica a coisa mais linda, mas quando bate o verão, acaba com tudo", começou a dizer, antes de voltar à realidade: há tempos, não chove.
A casa de Ana Rita também não tem sistema hidráulico. “Agora, a gente tem que pegar água no rio”, conta. Mas diz que não tem problema. Ana Rita é pequenininha – tem pouco mais de 1,50 m – mas é forte. E se gaba disso: faz roça, faz cerca, arranca “toco” (troncos de árvores para abrir espaço para lavoura), carrega peso e até entra na lama para ajudar no resgate da vaca que atolou. “Sou pequena, mas me viro. Se eu tiver podendo andar, faço meu trabalho. Eu não tenho medo".
Pior período de seca desde 1910
Os personagens de Morrinhos poderiam estar nos livros de Graciliano, mas também em qualquer uma das 78 cidades baianas que fecharam o ano de 2016 em situação de emergência por seca ou estiagem: ou seja, são um em cada cinco municípios baianos nessa penúria.
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Para muito sertanejo, é a pior seca em muito tempo. A conclusão dos meteorologistas ajuda a entender: é o quinto ano consecutivo no Nordeste. Entre os municípios baianos, 43 enfrentam a seca há pelo menos cinco anos. Em outros, até 100% da população foi afetada. Não se amargurava uma seca de tanto tempo assim desde o ciclo de 1979 a 1983, segundo a Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme), que é uma das responsáveis pelo Monitor de Secas do Nordeste do Brasil, em parceria com a Agência Nacional de Águas (ANA). E, realmente, é o pior período de seca prolongada desde 1910.
“Esta última foi pior do que a anterior porque choveu menos, mas, quanto a impactos relativos à população, a gente crê que foi um pouco menos. Claro que tem um impacto econômico profundo com perdas agrícolas e diminuição do rebanho, mas, como há políticas e obras estruturantes, esse impacto foi um pouco menos grave”, afirma o supervisor do núcleo de meteorologia da Funceme, Raul Fritz.
Foi também nos últimos cinco anos que Paratinga, uma cidade com 32 mil habitantes no Vale do São Francisco, viu a estiagem, que já vinha de tempos anteriores, se agravar. “De cinco anos para cá, começou a agravar outro problema – o rio (São Francisco) seca e a cidade só não fica sem água porque tem duas escavadeiras dentro do rio, abrindo caminho. A cidade só não entrou em colapso porque essas duas retroescavadeiras abrem um rego (no rio) para que a água entre e abasteça”, contou ao CORREIO, em dezembro, o então prefeito, Zequinha Dourado.
Agora, em trechos onde só existia água do São Francisco, dá até para caminhar na terra. Paratinga é, hoje, a quarta cidade com maior percentual de população afetada no estado – perde para Condeúba (no Centro-Sul), Santa Teresinha (Centro-Norte) e Caém (Centro-Norte) e também figura entre as que amargam a seca prolongada há pelo menos cinco anos.
Em alguns lugares da zona rural, o prefeito diz que é difícil encontrar água até para consumo humano. Como a cidade é rodeada pelo Rio São Francisco, uma parte do território acaba se tornando uma ilha. Segundo ele, são cerca de 740 hectares de ilha. Mas a parte do rio que passa pelo Centro é que está secando, principalmente entre os meses de julho a novembro. “A cidade está passando por uma crise hídrica sem precedentes”.
Na mesma região, o município de Muquém de São Francisco também enfrenta sua luta diária. Há oito anos, há povoados abastecidos com carros-pipa e, por vezes, a prefeitura precisa providenciar cestas básicas. É que, segundo o técnico agrícola da Secretaria de Agricultura da cidade, Gilmar Correia, a situação é tão grave que não há uma boa safra desde 2003. Gilmar acrescenta ainda que a seca vem aumentando a procura por postos de saúde. "O pessoal procura muito por causa de cálculo renal. Não tem água, os poços estão secando", diz.
[caption id="attachment_50931" align="aligncenter" width="1209"] Santa Teresinha, no Centro-Norte, é uma das cidades mais afetadas (Foto: Arisson Marinho/Correio)[/caption]
O milho, que antes era o principal produto da agricultura familiar local, praticamente não existe mais. Se a média anual de chuva chegava a 700, 800mm, 13 anos atrás, hoje, é difícil passar dos 200mm. Em termos de comparação, em 2015, a média anual de chuva em Salvador foi de 1,8 mil mm.
A situação do Rio São Francisco, de fato, não está nada boa. De acordo com o ambientalista Luiz Dourado, membro do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), o rio está sofrendo o impacto da duração da seca.
Esses municípios, Muquém e Paratinga, ficam na região que é conhecida como ‘Médio São Francisco’, que é onde o rio já não tem a mesma profundidade de outrora. “A parte mais profunda vai sendo soterrada por aterramento ou por depósito de sedimentos ou areia. Como o rio fica raso, as companhias de abastecimento e as captações para a agricultura precisam de novos componentes hidráulicos para fazer a captação da água. E isso afeta os municípios, cada um com sua vertente”.
* Parte extraída da série Vozes do Nordeste/Aquarela do Brasil do Correio 24H
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