Com todo respeito ao Elevador Lacerda, ao Farol da Barra e ao Pelourinho, mas, agora, estes cartões-postais disputam espaço com outras atrações na cidade. Os 12 mil turistas que devem passar pela Bahia durante os Jogos Olímpicos também podem querer conhecer o outro lado da capital baiana – que mostre mais da rotina de quem vive por aqui. Em várias comunidades de Salvador, esse tipo de passeio tem cada vez mais força.
[caption id="attachment_43848" align="aligncenter" width="600"] Turistas têm a oportunidade de circular pelas ruas do Calafate, na Fazenda Grande do Retiro, e conhecer um pouco da história da comunidade (Foto: Evandro Veiga/Correio)[/caption]
Os tradicionais pontos turísticos dão lugar a um cenário diferente: ladeiras, escadarias, casas com laje, creches e moradores que estão em cada bairro praticamente desde a sua fundação, como no Uruguai (veja ao lado). Na comunidade do Calafate, na Fazenda Grande do Retiro, o chamado turismo comunitário já existe há dez anos, promovido pelo Coletivo de Mulheres do Calafate.
“A gente não quer substituir nem entrar no roteiro oficial de turismo. Mas que o visitante tenha a opção de experimentar esse turismo de proximidade com a comunidade”, explica a fundadora do coletivo, Marta Leiro. Lá, antes mesmo de o projeto existir, os moradores já recebiam visitas, mas nada muito formal ou organizado.
Só depois que uma associação britânica (que já não existe) que desenvolvia trabalhos em bairros populares de Salvador apresentou uma proposta que o turismo comunitário no Calafate começou a se estruturar. Após a parceria, os moradores seguiram de forma independente.
Não convencional
O roteiro é um tanto fora do convencional e pode mudar, segundo as expectativas do grupo participante – que, normalmente, tem 20 pessoas. O Correio acompanhou o tour de um grupo de estudantes e professores do curso de Serviço Social das faculdades Estácio e Vasco da Gama, que durou cerca de quatro horas.
O ponto de partida foi o chamado “espaço memória” - a casa de uma das famílias mais antigas do Calafate. Dona Doroteia chegou à rua que dá nome à comunidade em 1932 e constituiu família no imóvel que já serviu de igreja, antes da paróquia local ser construída, anos depois, a poucos metros dali.
Quem conta a história é a dona Maria Magdalena Tavares, 82 anos, que nasceu na casa e vive ali até hoje – tirando certos períodos de sua vida, como os 12 anos que passou estudando no Convento de Santa Clara do Desterro. Além dela, a guia Azânia Leiro também dá o tom da história. No espaço de acolhimento e pouco antes de um lanche feito pelo próprio coletivo, ela narra a chegada da primeira moradora do Calafate, Sinhá Paulina, que lá chegou em 1909. “Aqui era tudo muito rural. Os vizinhos se comunicavam, trocavam frutas”, diz Azânia, durante o acolhimento.
Somente 80 anos depois foi fundada a primeira associação de moradores do Calafate. Antes, devido à ditadura militar, a maioria dos moradores não se organizava politicamente. Pelo menos, não publicamente. O próprio espaço de convivência serviu para reuniões de membros da Igreja Católica que, além de transmitir a doutrina religiosa, discutiam questões políticas.
Sem violência
Quem escuta os relatos do tour se perde na história. “Temos violência aqui, sim, mas o turismo veio com a intenção de mostrar que a periferia também tem cultura, tem história e mudar essa imagem”, diz a guia. Ela mostra às visitantes a casa da primeira professora do Calafate – que morreu aos 102 anos.
[caption id="attachment_43849" align="aligncenter" width="600"] Os passeios à comunidade do Calafate custam R$ 35 e acontecem, em média, uma vez por mês (Foto: Evandro Veiga/Correio)[/caption]
No alto de uma das ruas, fica o que chamam de “Casa de Vidro”. Na verdade, é uma casa de tijolo e alvenaria mesmo. De resto, é uma residência que tem muito vidro. Os azulejos são de vidro, assim como a pia da cozinha, a lixeira do banheiro, o saleiro preso na parede... Uma guitarra de decoração na sala tem até cordas feitas de espelho.
“Meu marido é lapidador há 25 anos e, há dez, eu desenho com ele. Essas visitas são ótimas porque são uma forma de divulgar. Aqui em casa, já veio francês, americano... Eles saem cheio de fotos. Inclusive, teve um francês que foi mexer na guitarra e acabou quebrando uma das cordas de espelho. Ainda nem consertamos”, conta Eunice Souza, 42, conhecida como “Neném”.
Depois, o grupo é levado à sede do Coletivo de Mulheres do Calafate. Entre paredes na cor lilás e uma bruxinha que pintada nas paredes recepcionando os visitantes – dois símbolos que remetem ao movimento feminista – as guias e associadas do coletivo fazem um breve resumo da organização, fundada há mais de 20 anos e que hoje conta com 52 participantes.
“A gente já recebia visitas, mas de projetos sociais para conhecer o coletivo, não para conhecer o Calafate. O que a gente fez foi ampliar, o que fortalece muito a autoestima das mulheres e dos moradores, de uma forma geral. E é um turismo que a gente não precisa se transformar para o visitante, não precisa mandar que faça limpeza na rua para que o visitante venha. Ele vai ver a realidade da comunidade. A gente arruma a comunidade primeiro para nós, moradores”, diz Marta Leiro.
Este ano, turistas dos EUA que trabalhavam na área de Educação vieram visitar o Calafate e pediram que o roteiro incluísse uma visita à creche local. “Eles queriam saber como era a educação básica aqui e observaram cada coisa na creche”, conta a coordenadora do coletivo, Elba Sena, 30.
Hora do rango
Na hora do almoço, os participantes podem escolher entre duas opções locais: um mocotó no Bar da Dalva ou uma feijoada de amendoim – sim, isso existe no Calafate – no Bistrô do A. “Quando eles vêm comprar algo, sugerimos coisas dentro da própria comunidade, seja uma água, seja o almoço”, explica a guia Azânia. O valor da alimentação está incluído no preço cobrado pela visita: ao todo, custa R$ 35.
“Nunca tinha visitado nada dessa forma. Estou achando ótima essa iniciativa de apresentar o bairro assim, até para que os moradores e os visitantes possam pensar no que fazer pelo bairro”, avaliou o estudante de Serviço Social Rosival Santos, 51.
A francesa Bertille Watrelot, 27, que mora há um ano no Brasil, soube do projeto através de uma conhecida que cresceu no Calafate. O interesse por esse tipo de roteiro veio dos estudos na própria França, onde trabalhava com Serviço Social, Antropologia, Sociologia em organizações que tratavam de imigrantes. “Queria um turismo diferente do normal. Não gosto muito desse turismo de consumo que invade tudo. Aqui temos um coletivo de mulheres que se organizam para isso. Acho muito importante”.
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